Obama, o ''fenômeno anti-Washington''
O ''fenômeno Obama'' é um trecho de um longo artigo em duas partes, o Guia para o leitor espanhol – visando decifrar o que se escreve sobre a eleição presidencial nos Estados Unidos, escrito pelo professor catalão Vicenç Navarro.*
Publicado 20/02/2008 21:54
Muitos observadores europeus se perguntam por que a classe trabalhadora dos EUA não vota, ou por que não vota em outros partidos exceto o Democrata e o Republicano. A resposta tem como base as enormes limitações do sistema democrático estadunidense.
A maioria da classe trabalhadora se abstém. E os que votam apóiam o Partido Democrata, embora durante a época Reagan [anos 80] um número crescente votasse no Partido Republicano, formando os Reagan Democrats (seu número diminuiu com Bush).
Resposta a uma frustração
É praticamente impossível, pelo sistema eleitoral não proporcional [distrital] existente, estabelecer um terceiro partido em nível nacional. Na verdade, os terceiros partidos têm prejudicado a legenda que se encontre mais próxima deles. Assim, o partido de Perot possibilitou a vitória de Clinton, e o Partido Verde de Nader, próximo do Democrata, possibilitou a vitória de Bush. Não existem portanto possibilidades de criar um terceiro partido em nível nacional.
Por isso, a expressão do protesto não se realiza através de novos partidos (o que é impossível), mas por meio das primárias nos partidos existentes. O protesto está se manifestando através das primárias, tanto no Partido Democrata como no Republicano.
Em muitos casos, os candidatos mais exitosos – como Barack Obama – são os que se apresentam como anti-estabilishment, muito especialmente contra Washington. Mas aqui é preciso fazer um esclarecimento importante, que raramente se faz: Não foi Obama que criou esse movimento. Pelo contrário, foi o movimento que criou Obama.
O movimento anti-estabilishment
A força anti-estabilishment é uma força contrária à classe empresarial e à classe política de Washington – percebida como demasiado dependente da primeira. É uma espécie de luta de classes em versão estadunidense: a luta do que nos EUA se chama classe média (na verdade, a classe trabalhadora e a classe média) contra a classe empresarial (corporate class) e sua desmedida influência no mundo político.
O poderio do sentimento popular anti-estabilishment é que praticamente todos os candidatos democratas, e inclusive grande parte dos republicanos, têm que colocar como eixo central do seu discurso a defesa da classe média, frente à classe política sediada em Washington. Todos os candidatos democratas tiveram de enfatizar este discurso, inclusive Hillary Clinton, que era e é a candidata do estabilishment do Partido Democrata.
No entanto, quem o elaborou com maior eloqüência foi Obama, que tem a vantagem de não fazer parte do estabilishment de Washington, sendo senador há apenas um par de anos, e não se considerando parte do estabilishment. Mais ainda, suas credenciais anti-Washington têm a fiança de sua oposição à invasão do Iraque.
O fenômeno Obama
A versão mais generalizada do que está acontecendo nas primárias dos EUA é que um candidato praticamente desconhecido, Barack Obama, de raça negra, com mensagem idealista e grande mobilizador radical, está inspirando a juventude e os setores mais reformistas da sociedade estadunidense. E está ganhando a campanha contra a candidatura do estabilishment, representada por Hillary Clinton.
Essa versão é muito comum nas páginas da imprensa espanhola. Mas é uma explicação errônea do fenômeno Obama, ou pelo menos insuficiente, por ignorar o contexto político e social que referimos.
Sem a enorme frustração e alienação existentes nos EUA, face ao estabilishment político e empresarial, Obama não teria sido nem uma nota de rodapé nestas primárias. Inclusive o fato de ser negro jogou um papel-chave a seu favor, como explicarei adiante.
Essa explicação subestima o extraordinário trabalho de Obama, que soube articular em um discurso mobilizador o sentimento de milhões de pessoas. É um discurso de grande eloqüência, mistura de Martin Luther King com presidente Kennedy, em que ele se apresenta como porta-voz do povo estadunidense contra o mundo de Washington.
Uma biografia retocada
Sua campanha eleitoral apresenta uma biografia um tanto enviezada e não de todo correta. A biografia oficial apresentada apresenta-o como filho de uma família humilde, que o pai abandonou quando Barack tinha dois anos de idade, passando dificuldades durante a juventude e adolescência.
A família de Obama, porém, não era humilde. Seu pai estudou na Universidade de Harvard e sua mãe se casou de novo com um homem de negócios do petróleo, deslocando-se para a Indonésia, de onde o enviaram à casa dos avós no Havaí, onde freqüentou uma das mais elitistas escolas para brancos. Daí ele passou a um colégio privado em Los Angeles e depois foi estudar Direito na Universidade de Colúmbia e em Harvard. Mudou então para Chicago, onde trabalhou em um escritório de advogados que defendiam interesses empresariais e imobiliários. Um deles foi seu amigo Tony Rezko (especulador imobiliário hoje no banco dos réus), que mais tarde financiou parte de sua campanha ao Senado por Illinois.
Ao decidir-se pela carreira política, Obama deixou o escritório de advogado e trabalhou nos bairros negros mais humildes de Chicago, que o elegeram para o parlamento do estado em 1996. Foi durante essa etapa que criticou a invasão do Iraque, refletindo corretamente o sentimento da população negra trabalhadora que o elegera.
Elegeu-se senador em 2006, em uma carreira política meteórica. Uma vez no Senado, aprovou, no entanto, todas as propostas de apoio às forças armadas no Iraque, tal e qual Hillary Clinton. Na verdade, como recorda Hillary, uma vez no Senado ele deu os mesmos votos que ela.
Ao se apresentar para as primárias, Obama estava consciente de que o seu background poderia dificultar-lhe o avanço político. Ele era negro e politicamente oriundo do movimento de direitos civis, que, em sua maioria (embora não fosse o seu caso), tinha uma mensagem radical que assustava setores da população.
Um amplo leque eleitoral
Daí que, sabedor da lealdade do eleitor negro (o mais consciente do país nestas primárias; há mais eleitores brancos que votam em candidatos negros que viceversa), propôs-se a alcançar um amplo espectro da população, enfatizando a unidade de raça, de gênero e até de classes sociais em um projeto comum, anti-Washington, identificando sua opositora, Hillary Clinton, com Washington.
Esse amplo leque eleitoral permitia-lhe adotar um programa e um tom que uniria o máximo de população. Daí que tenha feito as propostas de políticas públicas mais moderadas de todos os pretendentes democratas, a fim de não ameaçar as classes de renda superior, que também queria integrar em sua coalizão.
Isso explica a acolhida favorável que ele recebeu por parte dos meios de comunicação. Como dizia Krugman em seu artigo no The New York Times, ninguém se sente ameaçado por esse discurso unitário: só os lobbies de Washington.
Mas, como também disse Krugman, a mudança que propõe em seu discurso requereria medidas muito mais ambiciosas que as que Obama propõe. No setor da Saúde, por exemplo, suas propostas não confrontam as companhia de seguros. No setor financeiro, não confronta com os Hedge Funds; e no da habitação não confronta a empresa imobiliária.
Como recorda freqüentemente Hillary (que não é uma boa oradora, mas em troca é muito mais ágil que Obama nos debates, o que explica a resistência deste a debater com ela), o slogan ''Sim, podemos'' não dá conta do objetivo programático, do que podemos e não podemos.
A grande moderação programática contrasta, portanto, com discurso de motivação transformadora. As forças progressistas esperam e desejam que a própria mobilização popular force Obama a tomar medidas mais reformistas. A própria dinâmica que levou ao poder o presidente Kennedy pôs em marcha uma série de propostas(que sequer estavam em seu programa), mais tarde desenvolvidas por Lyndon Johnson (um presidente que, em termos domésticos, foi o mais progressista desde Roosevelt e Truman), como a criação do MediCare (o programa de saúde federal para cobrir a assistência aos idosos) e a MedicAid.
De onde vêm os votos
No momento, o apoio eleitoral a Obama veio do voto negro (80%), do voto jovem (62%) e do voto branco de profissionais com nível universitário (42%). A classe trabalhadora, exceto a negra, continua a se abster; e a que vota democrata apoiou principalmente Hillary, tanto as mulheres como os homens (porém com uma percentagem maior nas mulheres).
O apoio dessa classe a Hillary Clinton deve-se primordialmente à preocupação como o deterioramento econômico do país, e à lembrança da situação econômica dos tempos de Bill Clinton, melhor que a atual. A maioria dos sindicalistas (e a maioria dos sindicatos, influentes nas bases democratas) também apóia Hillary. Os sindicatos, que foram reprimidos na administração Bush, estão muito mobilizados nesta campanha e a maioria apoiou Hillary, embora seus membros, sobretudo jovens, estejam se deslocando para Obama.
Este, por sua vez, cada vez mais adota um discurso com tons obreiristas, copiando [o postulante de centro-esquerda John] Edwards, cujo apoio solicita assiduamente), falando explicitamente da luta de classes (à moda estadunidense) que ocorre diariamente na vida do país e em suas conseqüências na existência do mundo do trabalho. No seu discurso, a corporate class aparece como os lobbies patronais em Washington, e o problema maior dos EUA é apresentado como o conflito entre o povo estadunidense e Washington.
Uma última observação, sobre a falta de apoio dos latino (o voto hispânico) a Obama, interpretado como fruto de um suposto racismo latino ou de tensões entre comunidades negra e latina. Aqui, novamente, erra-se ao ver a realidade através da raça e não através da classe. A população latina dos EUA tem votado constantemente em candidatos negros, de Nova York à Califórnia.
O voto latino (que por sua vez é variado, mas com maioria chicana no Oeste e centro-americana no Leste) é um voto trabalhador não-qualificado, de grande lealdade sindical. Como o operário branco não-qualificado, apoiou mais Hillary que Obama. Mas, na medida em que este está adotando um discurso mais próximo desse setor da classe trabalhadora, mobiliza seu apoio.
Assim, enquanto em Nevada Obama conseguiu apenas 26% do voto latino (na sua maioria entre trabalhadores da indústria hoteleira), no Arizona obteve 42% e em Connecticut 53%. Na medida que o candidato se refere à classe, a classe responde. Na verdade, 54% dos latinos apoiaram Obama na Virgínia, e esta percentagem tem aumentado.
Hillary na defensiva
Diante desta situação, Hillary Clinton está na defensiva. É difícil para ela apresentar-se como anti-Washington. E seu fracasso na reforma da Saúde (devido à enorme influência dos planos de saúde no seu grupo de trabalho [durante o governo Clinton]) torna-a muito vulnerável a essa crítica.
Escrevi, num artigo no CounterPounch sobre essa influência, Por que o plano de Hillary falhou, que Obama astutamente usou o episódio em sua crítica à concorrente. A resposta da senadora foi radicalizar seu discurso, enfatizando os temas que são particularmente importantes para a mulher trabalhadora (como saúde, jardins de infância, serviços domiciliares e habitação).
As esquerdas deveriam recuperar suas categorias analíticas, como classe social. Não basta usar as categorias de raça e gênero. Nos EUA, os candidatos do Partido Democrata tiveram que recuperar tal linguagem, referindo-se à classe trabalhadora (working families), cujo comportamento de classe permanece oculto quando só se enxerga com as lentes de raça, gênero ou não. Naturalmente essas categorias têm grande importância. Mas por si não bastam.
Hoje, um negro e uma mulher estão lutando nos EUA para ganhar as eleições e os dois estão pedindo o voto da população trabalhadora, fazendo um chamado à aliança de classes (classe trabalhadora e classe média), contra a corporate class que controla a capital política, Washington. Estão tentando capitalizar um movimento anti-classe política, denunciando esta por sua proximidade com a corporate class. É surpreendente que os dirigentes do Partido Democrata (que são mais moderados que os dirigentes de esquerda espanhóis) estejam falando da e para a classe trabalhadora, enquanto aqui na Espanha quase ninguém o faz. O que é um erro.
* Fonte: http://www.vnavarro.org; Vicenç Navarro é professor na Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha) e na The Johns Hopkins University (Baltimore, EUA)