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1964 por Guarnieri: retrato do jovem cronista comunista

Durante os dois meses que antecederam o golpe militar, o ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarniere escreveu textos diários para o Última Hora; histórias traziam pela primeira vez personagens do povo para um jornal de grande circulação.

No dia 31 de março de 1964, o ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri participava de um debate com alunos do curso de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) quando um estudante entrou na sala gritando.


 


Os militares haviam dado o golpe. Além de desmantelar a esquerda no país, a derrubada de Jango fez com que Guarnieri, militante do Partido Comunista (PCB), buscasse refúgio temporário na Bolívia, interrompendo as apresentações da peça O Filho do Cão e a publicação das crônicas diárias que escrevia para o jornal Última Hora de São Paulo.


 


Publicada em 1º de abril de 1964, a crônica Um Pai contava a história de um estudante que voltava doído após levar uma surra da polícia durante uma manifestação. A coincidência histórica permaneceria esquecida não fosse o trabalho do jornalista Worney Almeida de Souza.


 


Durante uma pesquisa sobre a tira em quadrinhos Gatinha Paulista, de José Delbó, publicadas no UH Revista, suplemento de cultura do Última Hora de São Paulo, Worney deparou-se com as crônicas de Guarnieri e duas coisas despertaram seu interesse: o desconhecimento desses textos e o período em que eles foram escritos.


 


“A família sabia da existência dessas crônicas, mas não tinham o material em mãos”, conta Worney. “Elas foram reproduzidas a partir da coleção do Arquivo do Estado de São Paulo, onde a pesquisa foi realizada”, afirma.


 


Desse acaso nasce Crônicas 1964, compilação que apresenta para um novo público uma parte pouco conhecida da obra de um dos maiores nomes do teatro, cinema e televisão do país.


 


Instrumento privilegiado


 


No início de 1964, Jorge da Cunha Lima, então diretor do Última Hora paulista, convidou Guarnieri para escrever crônicas diárias destinas à página 2 do caderno UH Revista. A iniciativa fazia parte dos planos de Samuel Wainer, que buscava para seu jornal um formato editorial que o tornasse a “publicação mais representativa da inteligência paulista”, segundo o próprio Cunha Lima. Para compor o quadro de colaboradores do novo caderno, que era novidade na época, também foram convidados Ignácio de Loyola, Sérgio Porto e Jô Soares, entre outros.


 


O comunista Guarnieri viu ali a oportunidade de atingir um público maior, ocupar o espaço para expor idéias. Era a oportunidade de usar o jornal, como um instrumento privilegiado, para o debate político.


 


“Ele veio para São Paulo por conta da militância”, observa Worney. “Era do movimento estudantil do Rio e foi colocado aqui na União Paulista dos Estudantes Secundaristas (Upes), onde foi nomeado secretário-geral”, acrescenta.


 


Em conversa reproduzida no livro, o próprio Guarnieri relembra a motivação para escrever para o Última Hora. Para ele, “a luta popular como ela se colocava e da forma que estava acontecendo tinha muito de humano, na forma de mostrar os dramas. Eu situava a maioria das crônicas na cidade de São Paulo, falava da Praça Clóvis, da Praça da Sé, do bairro do Jabaquara…”


 


Worney lembra que, em 64, Guarnieri era um nome conhecido do público. “Ele já havia feito Eles Não Usam Black-Tie, Gimba (ambas em 1958) e A Semente (1961), que foi proibida por contar a história da formação de uma célula do Partido Comunista”, conta. “Mas ele não fazia distinção entre as crônicas e as peças, por exemplo. Tudo era instrumento de militância. Ele era uma figura pública, que usava sua criatividade, como autor ou ator de teatro, para esse fim”, recorda.


 


O olhar do trabalhador


 


“O teatro, para ele, foi uma forma de militância, que repercutiu até mais do que a militância partidária”, avalia Worney. “Ele é o primeiro a mostrar os trabalhadores urbanos em uma peça teatral profissional. No começo do século, isso havia sido feito pelos anarquistas, mas profissionalmente ele é o primeiro. Não dá nem para imaginar o impacto causado em 1958, nos anos JK, alguém fala sobre trabalhador e greve”, compara.


 


O momento vivido pelo país, ou pelo menos a intensidade com que Guarnieri o sentia e interpretava, era refletido diretamente em seu trabalho. O contato com as lideranças das Ligas Camponesas no começo dos anos de 1960, quando conheceu (Francisco) Julião, lhe deu a idéia de levar ao teatro o trabalhador do campo, o que resultou na peça O Filho do Cão, que ele encena no período em que escrevia as crônicas.


 


E esse cuidado em dar voz à classe trabalhadora é, segundo Worney, uma suas principais características de suas histórias. “Em comparação com outros cronistas, como Nélson Rodrigues, por exemplo, que buscava descortinar a hipocrisia burguesa, Guarnieri mostrava a luta de classes pelo olhar do trabalhador. Ele não discute muito a moral, mas mostra a realidade das pessoas”, pondera.


 


Nunca aos domingos


 


Foram 46 crônicas escritas – desde a primeira, Primeiro Filho, de 4 de fevereiro, até a última, Um Pai, de 1º de abril de 1964 – e publicadas de segunda-feira à sábado, já que o jornal não saía nos domingos. Nesse período, o engraxate Cem Gramas, a vó Zuleica, a noiva Julieta, o jovem Zorro e o homem-sanduíche Casimiro tiveram sua voz reproduzida na grande imprensa.


 


Segundo o prefácio de Jorge da Cunha Lima, idealizador da colaboração para o Última Hora, eram “crônicas apaixonadas de um jovem comunista engajado no sonho da revolução” e “incomodavam uns e encantavam outros”.


 


Fato é que, depois do golpe, o Última Hora voltaria a circular uma semana depois, no dia 8 de abril. No lugar dos trabalhadores de Guarnieri, o mesmo espaço estampava a coluna Folhinha de Miss Luzes, escrita por Milena Melli, e que trazia notícias sociais.


 


Carreira foi marcada por visão humanista


 


Nascido em Milão, na Itália, em 6 de agosto de 1934, Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri veio para o Rio de Janeiro em 1936, com a família fugindo do fascismo. Sendo o pai maestro e a mãe concertista de harpa, teve como uma de suas primeiras influências artísticas a ópera., assim como o cinema neo-realista italiano.


 


Aos 14 anos já colaborava com o jornal Novos Rumos, da Juventude Comunista e, aos 15, assumia a presidência da Associação Metropolitana dos Estudantes Secundários (Ames-Rio) e a vice-presidência da União Nacional dos Estudantes Secundários (atual Ubes). Em 1953, muda-se para São Paulo, assumindo a secretaria-geral da Upes.


 


Em 1955, com Oduvaldo Vianna Filho, funda o Teatro Paulista do Estudante (TPE), que realizou trabalhos em parceria com o Teatro de Arena até se fundirem em 1956. Em 1958, o grupo apresenta seu texto de estréia, Eles Não Usam Black-Tie, um de seus trabalhos mais conhecidos, ganhando uma versão cinematográfica em 1981.


 


Ainda no teatro, escreveu ou participou de produções importantes, além das já citadas, Arena Conta Zumbi (1965), Marta Saré (1968), Don Juan (1970), Castro Alves Pede Passagem (1971), Um Grito Parado no Ar (1973), Ponto de Partida (1976), Pegue e Não Pague (1981), Pegando Fogo… Lá Fora (1988), Ardente Paciência (1990) e Anjo na Contramão (2001).


 


No cinema, atuou como ator em uma série de filmes, como A Hora e a Vez de Augusto Matraga; Gaijin, Caminhos da Liberdade; Asa Branca, Beijo 2.348/72 e O Quatrilho. Na TV, seja como ator ou autor, esteve envolvido com minisséries e novelas, como Mulheres de Areia, Carga Pesada, Rainha da Sucata, Anos Rebeldes, Terra Nostra e Belíssima, entre outras. Faleceu em 22 de julho de 2006, aos 71 anos, de insuficiência renal crônica