Canoa Quebrada além do mar

Todo dia, uma verdadeira rede social é jogada no mar da comunidade de Canoa Quebrada, em Aracati


 


 


 

Tem muito mais coisa entre as falésias e o mar do que turismo na Praia de Canoa Quebrada. Tem gente. Famílias inteiras vivem do turismo, mas principalmente da pesca e da criatividade. Um dos maiores destinos litorâneos do País, Canoa Quebrada, em Aracati, é atrativo do lazer, da alegria, do descanso, mas também da prostituição, das drogas, da violência. No meio de tudo isso, associações criadas na comunidade resistem em não perder seus filhos para a marginalidade também trazida pelo turismo. Com medo de ter filhos viciados em drogas ou prostituindo-se (resultado da velha ilusão do “gringo-encantado”), mães de famílias em situação de risco recorrem aos projetos sócio-culturais. Levam os filhos e vão junto. E dão uma nova cara a Canoa Quebrada, que pode ser vista muito além da beleza de sua praia dourada.


 


Se o leitor lê esta matéria na manhã de 07/09, o faz no mesmo momento em que pescadores, mulheres e crianças dos Estevão, um pedaço de comunidade com 80 famílias — das quase mil — de Canoa Quebrada, realizam a XI Regata de Jangada dos Estevão, com 40 pescadores em suas jangadas e outro grupo de seus filhos com jangadas em miniaturas, feitas artesanalmente por eles próprios numa competição realizada pelo mesmo esforço. Mas se lê à tarde, o faz durante os desfiles de moda com roupas de retalhos, bolsas de material reciclado ou a mostra de capoeira e maculelê. A regata é um dos eventos mobilizadores da comunidade local.


 


Mente reciclada


 


Todo dia uma verdadeira rede social é jogada no mar da comunidade de Canoa. O nomadismo, que deu origem ao símbolo da lua e da estrela a enfeitarem as falésias e os suvenires, é verificado em cada turista que vem e vai. Mas a comunidade fica, com muitas de suas mulheres “barrigudas” com filhos de pais não-nômades, mas anônimos, dando a nova cara mestiça, bronzeada desde que nasce. Mas a rede social fisga tudo, de meninos com consciência ambiental a meninas esclarecidas de que não precisam sair de Canoa com o “gringo” para serem felizes, passando por artistas dos malabares, do contorcionismo, do teatro, da música, do cinema. Reciclam papéis e tecidos para reciclar a mente.


 


A nossa primeira pescaria é no ReciCriança, uma Organização Não-Governamental ambientalista preocupada com a preservação das falésias, da limpeza nas dunas, dos peixes, e das pessoas. Todos os anos recebe centenas de estudantes de escolas públicas de Aracati e arredores para lhes dar aulas de educação ambiental por meio de trilhas ecológicas. Porém são a reciclagem de papel e a oficina de bonecas a maior incursão nos valores da comunidade, com metodologia que teve repercussão nacional. O papel reciclado produzido serve de base para desenhos, pinturas e objetos que fazem parte das brincadeiras.


 


O movimento acolhe diariamente cerca de 100 crianças da comunidade. Jovens como Girlene Pereira dos Santos, 23 anos, cresceram no ReciCriança – a entidade existe há 16 anos. “Eu faço a reciclagem de papel, oficina de pintura e teatro com as crianças”. Quando também era uma criança e participava do mesmo projeto, “eu era muito danada”. Seu futuro é cuidar da filhinha, que já tem dois anos, e — “se Deus quiser” — fazer muitas artes plásticas. As mães do ReciCriança geram renda com a produção de chaveiros, roupas, bonecas, artesanato em labirintos, sandálias, bolsas, mamulengos e fuxicos (retalhos de tecidos), com valores entre R$ 2,00 e R$ 30,00.


 


Muitas jovens mulheres de Canoa já são mães, muitas vezes “por acidente”. “Eu tenho uma filha de 13 anos e sei como é, tenho medo do que acontece nesse mundo a fora, por isso ela está aqui dentro do projeto”, conta Irene Pereira dos Santos, 46 anos, mãe de sete filhos. Com outras mulheres, atua na fabricação de bonecas de diferentes sexos, pois possuem os órgãos de reprodução desenvolvidos. Dessa forma, as crianças têm aulas de educação sexual. “Sim, ao falarmos sobre sexo por meio de bonecas estamos falando a linguagem da criança. Já soubemos até de casos de abusos sexuais, que de outra forma as crianças não falariam”, afirma Tércio Gellardi, um “faz-tudo” na comunidade e gerente-fundador da Associação ReciCriança.


 


A garota Estrela Cláudio da Silva, 12 anos, fez o parto normal de sua boneca. Nasceu uma bonequinha! Retirado o cordão umbilical, fez a boneca-mãe amamentar. Como outras meninas, ficou conhecendo o próprio corpo, as funcionalidades dos órgãos sexuais e suas conseqüências. Esse mesmo método de educação é utilizado pelos Centros de Referência Especializados de Assistência Social, em diversos municípios do País, que atendem, entre outras pessoas, crianças vítimas de abuso sexual.


 


Com biblioteca, sala de leitura, Sala Verde – espaço reservado para os mais variados livros de temática ambiental, fonte de pesquisa até para especialistas –, o projeto social ainda tem oficina de reciclagem, playground, quadra poliesportiva. A entidade é patrocinada pela empresa Rochester (SP), que investe mensalmente R$ 10 mil para a manutenção das instalações, projetos e pagamento dos 14 funcionários; Projecto Vivo e Brazil Bonito (MS); e entidade Monte Azul (SP). Duas vezes ao ano, os apoiadores enviam profissionais para ensinar dança, teatro, artes plásticas. Basta ter voluntário para transmitir conhecimentos.


 


“O principal parceiro do ReciCriança é a comunidade. Somos apenas articuladores das idéias” (Tércio Gellardi, Associação ReciCriança)


 


Praia em alerta contra a prostituição infantil


 


A Praia de Canoa Quebrada é considerada uma das mais belas maravilhas naturais do mundo. Mas dentre tantos adjetivos que lhe são colocados estão o de “ilha do prazer” ou “Moulin Rouge” brasileira, em alusão ao famoso local de prostituição e espetáculos artísticos da Paris do século XX. As mais variadas propagandas turísticas de venda do local não conseguem esconder: aquela praia é um dos principais pontos de risco para prostituição infantil, abuso sexual e venda e consumo de drogas. Quem diz é a própria comunidade. Ocupando o tempo com atividades sociais produtivas, crianças ganham a chance de serem crianças.


 


“É lamentável, mas infelizmente o que a gente percebe é que muitas famílias colaboram para a prostituição. Tem mãe que fica feliz quando vê a filha namorando um ‘gringo’”, afirma Tércio Gellardi, da comunidade de Estevão, em Canoa Quebrada, e professor da Associação ReciCriança. É o sonho do príncipe encantado (ou “gringo” encantado) que ilude a cabeça de meninas e mulheres à procura de uma vida “melhor”. Tércio confirma para a reportagem que o projeto acolheu crianças já vítimas de abuso sexual, “mas realmente é um assunto muito delicado aqui”. Principalmente quando a família é cúmplice – mães que participam do projeto afirmaram que boa parte do abuso sexual sofrido por crianças acontece em casa. A outra é pelo turista, muitos dos quais já visitam Canoa Quebrada em busca de prazer sexual.


 


Enquanto caminhava pela Rua Dragão do Mar (conhecida como Broadway, com seus inúmeros bares e boates), entre uma associação e outra, a reportagem foi “assediada” por uma jovem que aparentava 20 anos. “Marina”, como se identificou, perguntou onde estava hospedado. Após a negativa e a alegação de que estava apenas de passagem, a trabalho, afastou-se sem cerimônia. Há quatro anos, pesquisa da Comissão Intersetorial de Enfretamento ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, em parceria com a Universidade de Brasília, colocava Aracati como um dos 937 municípios brasileiros (e um dos 41 do Ceará) em maior situação de risco em virtude dos altos índices de violência sexual infanto-juvenil.


 


Um desafio para o conselho tutelar local, que, com freqüência, recebe os encaminhamentos de denúncias por parte das associações comunitárias e dos projetos sociais como ReciCriança (que educa por meio de bonecas com órgãos sexuais) e Canoa Criança, verdadeiros aliados na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes naquela praia.


 


Comunidade preservada


 


Além da praia, Canoa Quebrada tem outros projetos, como Canoarte, Canoa Criança, Canoa Mulher. A localidade de Estevão, também na praia, não tem ao menos iluminação pública – o que favorece a ação marginal noturna. Mas até que o dia escureça na terra da lua e da estrela, no alto de uma duna tem um casarão cheio de crianças gritando, correndo, aprendendo, mulheres fabricando, ensinando. A primeira mensagem é “não risque as falésias”. As que não pedem para preservar a natureza, pedem para preservar a comunidade.


 


80 famílias vivem na comunidade dos Estevão, em Canoa Quebrada. No lugar, adultos e crianças participam de atividades socioculturais para vencer os desafios colocados pelo turismo


 


Mais informações:
Associação ReciCriança
Praia do Estevão, Canoa Quebrada
(88) 3421.7074
www.recicrianca.org.br


 


 


Fonte: Diário do Nordeste