Fortaleza como "tela" do grafite

No muro, antes em branco, a mensagem era simples: “Reservado para pichadores e grafiteiros”. Porém, diferente do que pensou o conselho de moradores e a síndica do Residencial Jockey Clube, no bairro de mesmo nome, a frase foi o pretexto necessário para qu

“A intenção era que eles escrevessem somente no local que continha a frase. Entretanto, o Brasil é um País de mal-educados. Eles entenderam que o muro todo era para ser pichado”, desabafa a aposentada e síndica do prédio, Tina Sabóia, 51 anos.

 

Para solucionar o problema, que já se instala desde o ano passado, os condôminos decidiram contratar um grafiteiro. Por que o grafite? “Dessa maneira, os pichadores respeitam”, responde a síndica, que completa: “Espero o muro com mensagens educativas, que não contribuam com a poluição visual. Quero que sejam pinturas que ofereçam alguma coisa para os que vêem, com temas sobre natureza, drogas, lixo etc. Fica mais agradável”.

 

A iniciativa de Tina Sabóia e dos oito conselheiros do prédio leva, pelo menos, à reflexão de que, como explica a socióloga e presidente da Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci), Glória Diógenes, a sociedade mudou a concepção acerca do grafite e da cidade. Tida como arte marginalizada, a prática, há cerca de 10 anos, vem sendo entendida como algo que suscita reflexões ao passo que também tem a função de embelezar. Conforme detalha Glória, as metrópoles, inclusive, passaram a ser vistas como obras de arte.

 

“Com o crescimento das capitais, a procura delas como lugares para morar, trabalhar, se divertir, a valorização dos patrimônios históricos e a busca pela metropolização fizeram com que a cidade fosse percebida como obra de arte. O processo de produção artística nas cidades passou a ser percebido como arte há cerca de 10 anos. Com a contemporaneidade, a arte urbana ganha papel principal na sociedade”, considera Glória Diógenes.

 

Na opinião da pesquisadora Peregrina Capelo, coordenadora do Laboratório de Antropologia e Imagem da Universidade Federal do Ceará (UFC), nesse contexto das metrópoles, os trabalhos dos grafiteiros tem sido percebidos em lugares que, provavelmente, não são tão públicos assim.

 

“Os grafiteiros têm produzido nas grandes cidades trabalhos instigantes, não só nas ruas, nas paredes, nos asfaltos, nos prédios, mas também nas galerias de esgoto. Muito estranho, mas esgoto também pode se transformar em lugar de arte, mesmo curtido por ratos, baratas e pessoas que se aventuram nestes lugares”, avalia Peregrina Capelo.

 

De acordo com Glória Diógenes, a prática do grafite, portanto, revela-se como “a possibilidade de produzir a cidade como inscrição artística”. Como interpreta a presidente da Funci, a produção cultural pode ser apreciada por todos, indiscriminadamente, sem que haja um confinamento e restrição em museus, por exemplo. Dessa forma, os desenhos passam a se inscrever “num contexto mais amplo”, comenta.

 

Diante desse maior acesso às produções, sobretudo praticada por jovens da periferia, percebe-se uma maior adesão e reconhecimento da arte como forma de conscientizar, educar e evitar pichações nos muros, conforme alega a síndica do residencial, Tina Sabóia.

 

Para Peregrina Capelo, a procura pelo uso da prática deve-se muito ao conhecimento acerca de demais produções culturais ligadas ao grafite. Segundo ela, a mudança na forma em que a sociedade passou a encarar a arte atribui-se não apenas ao incentivo do poder público, mas, também, “por desejos individuais e pela mídia de mostrar esse trabalho em outros lugares do mundo”.

 

Banalização da técnica preocupa

 

Para os que são adeptos do grafite, além da preocupação com a qualidade técnica e das mensagens críticas a serem transmitidas, permeia o receio com a banalização da arte de rua. De acordo com grafiteiro Leandro Alves, arte-educador da Funci, de uns tempos para cá, muitos têm procurado o grafite como forma de oferecer apenas beleza estética para os que vêem muros de casas e prédios nas ruas.

 

Para se ter uma idéia, como também define o grafiteiro e arte-educador da Funci, Fabrício Maia, “o grafite está em moda em Fortaleza”. Como destaca, na Capital cearense, a atividade aparece estampada em blusas e na decoração de quarto de crianças, por exemplo. “Muitos grafiteiros, para se sustentarem, passaram a seguir essa linha mais comercial”, justifica.

 

Como compartilha Leandro Alves, o que mais preocupa os grafiteiros, na atualidade, é justamente a possibilidade de que o grafite seja visto somente como uma forma de embelezar o espaço. Sem que, portanto, haja a criticidade necessária para levar o público à reflexão acerca dos problemas no dia-a-dia.

 

“O grafite deve ser utilizado para incitar o senso crítico e poético na cabeça dos jovens. Até porque, eles estão embriagados com as drogas, violência etc”, justifica Leandro. Na opinião de Fabrício Maia, entretanto, a essência do grafite, como arte produzida nas ruas, ainda persiste. “Tentamos sempre estar no espaço público, levando informações às pessoas. Às vezes, somos barrados por policiais, pois não pedimos permissão. Porém, é o momento, é um muro que tem uma visão legal para dialogar com as pessoas, falar em forma de desenho”, comenta Maia.

 

Por mais que ambos concordem que houve uma popularização do grafite, sobretudo atualmente, os arte-educadores consideram que ainda existe preconceito em relação à prática destinada e concretizada por jovens. A intervenção urbana, como justifica Leandro Alves, ainda é marginalizada. “Acho que somente 20% da sociedade entendem as mensagens. Os 80% restantes vêem como arte marginalizada. As pessoas não têm acesso, não compreendem a informação que não é maquiada”, critica.

 

Segundo Fabrício Maia, hoje ainda existe um preconceito muito forte. Como recorda, “às vezes, a agente passa com os grafites e as pessoas nos chamam de pichadores. Não é isso. Para ser grafiteiro tem que gostar e ter senso crítico”, diz.

 

Grafite brasileiro entre os melhores do mundo

 

A definição mais popular diz que o grafite é um tipo de inscrição feita em paredes. Diante dessa descrição, existem relatos e vestígios da técnica, desde o Império Romano. Seu aparecimento na Idade Contemporânea se deu somente na década de 1970, em Nova York, nos Estados Unidos. Para se ter uma idéia, alguns jovens começaram a deixar suas marcas nas paredes da cidade. Algum tempo depois, essas marcas foram evoluindo com diferentes técnicas e desenhos.

 

A prática do grafite está ligada a vários movimentos, em especial ao Hip Hop. Para ele, o grafitismo é a forma de expressar toda a opressão que a humanidade vive diariamente, principalmente os menos favorecidos, ou seja, o grafite reflete a realidade das ruas. A técnica foi introduzida no Brasil apenas no fim da década de 1970, em São Paulo. Os brasileiros, por sua vez, não se contentaram com o grafite norte-americano, então começaram a incrementar a arte com um toque brasileiro, que é reconhecido entre os melhores do mundo.

 

Entrevista com Peregrina Capelo Cavalcante, Professora, pesquisadora do Dep. de Ciências Sociais e coord. do Laboratório de Antropologia e Imagem da UFC.

 

Essa arte tem uma recepção, isto é, uma comunicação de símbolos e signos´

O que leva os jovens a picharem os muros?

Os jovens necessitam de processos identitários emblemáticos e poucos convencionais, tais como, pichar muro, tatuar seus corpos, usar piercings e estilos de roupas excêntricas, colorir e cortar os seus cabelos registrando uma marca personalizada. Geralmente, as pichações são feitas em lugares de difíceis acessos, requerendo um desafio heróico, característico dessa faixa etária. É como chamo “tourear com a vida”, correr risco, perigo. Toda sociedade e toda cultura produz um jeito de ser jovem legitimado, isto é, dentro dos padrões aceitos coletivamente, como existem também linhas de fuga que perturbam o institucional estabelecido, como é o caso das pichações e de outras ´rebeldias´.

 

Há relação com a afirmação deles nos grupos?

Atualmente, existem milhares de ´tribos´, cada uma com sua estética seja corporal, musical e ideológica. As formas de ser com marcas de diferença na juventude atravessam tempos históricos; por exemplo, o cangaço foi uma revolta jovem. Grande parte dos cangaceiros do bando de Lampião eram menores de idade, que fugiam da violência de suas famílias ou da rigidez patriarcal para um mundo de aventuras pelo Sertão. A contemporaneidade globalizada e conectada virtualmente produz também estilos de comunidades jovens. Dificilmente, um jovem de classe média não tem seu blog, conclamando outros de pertença semelhante, seja por afinidades poéticas, literárias, musicais, religiosas, estilos de trabalho, mentalidades, sexualidades, etc. O Hip hop, por exemplo, é uma.

 

O grafite pode ser usado para substituir as pichações? Tem o mesmo ´efeito´?

Sim, o ideal é que fosse usado para substituir. As pichações, por mais que sejam signos comunicantes, na minha opinião, são de péssimo mau-gosto, depedram os monumentos públicos, as fachadas de casas e prédios, me parece coisa de subjetividade lixo, não comunicam nada, e como disse o Velho Chacrinha ´quem não se comunica, se trumbica´. O grafite tem uma recepção, isto é, uma comunicação de símbolos e signos, mas isso não quer dizer que o grafite seja sempre politicamente correto.

 

Na sua opinião, os jovens recebem a atenção necessária do poder público?

A grande maioria da população jovem de fortaleza e do Brasil é pobre. Os poderes públicos municipais, estaduais e federais são impotentes para oferecer a eles programas adequados, como boas escolas que deveriam funcionar todos os expedientes, inclusive à noite, maximizando o espaço, oferecendo educação, arte e lazer. Fortaleza é uma cidade cruel para essa juventude. A urbanização não oferece áreas de lazer, praças esportivas, centros comunitários com programação, inclusive uma alimentação adequada e programas de saúde. A culpa não está nas famílias, mas na macro estrutura das opções e da prática econômica e política.

 

 

 

Fonte: Diário do Nordeste