Crack: menores que vivem na rua são mais vulneráveis
Embora o crack esteja disseminado entre todas as classes sociais, para crianças e adolescentes o consumo nem sempre é uma opção, mas um meio de sobrevivência.
Publicado 13/03/2009 15:06
Embora o crack esteja disseminado entre todas as classes sociais, para crianças e adolescentes o consumo nem sempre é uma opção, mas um meio de sobrevivência. Para resgatar a juventude desses meninos e meninas, organizações não-governamentais (ONG) investem na educação e ressocialização dos menores.
“A droga faz parte de quem está na cultura da rua. A gente percebe que, na rua, a maior parte das crianças e adolescentes não é dependente, eles fazem uso mais circunstancial”, afirma Cecília Motta, coordenadora do Projeto Quixote, que atua há 13 anos na Estação da Luz, zona central da cidade de São Paulo, conhecida também como Cracolândia.
Muitas crianças e adolescentes deixam os bairros de origem e vão em direção ao centro da cidade em busca de aventura. Para a coordenadora, esses “refugiados urbanos” querem se distanciar de situações insuportáveis, como a violência doméstica.
Em Brasília, a situação não é diferente. Grande parte das crianças e adolescentes de rua da capital está concentrada na rodoviária, no centro da cidade.
Em Curitiba, o consumo de crack também tem crescido entre crianças e jovens. “A região mais crítica é a central. São crianças de muito pouca idade que viraram soldados-zumbis do tráfico. Elas ficam na esquina dia e noite comercializando as pedras para sustentar seu próprio consumo”, afirma o secretário municipal Antidrogas, Fernando Destito Francischini.
As ONGs que tratam desses jovens apostam no acompanhamento clínico, pedagógico e social.
No Projeto Quixote, o tratamento é feito em três etapas: abordagem, abrigamento e ressocialização familiar. “À medida que eles vão se vinculando e vão participando das oficinas lúdicas e pedagógicas, eles abandonam a droga com muita tranquilidade. Não temos dúvida de que criança quer brincar. Criança que empina pipa, não pipa pedra”, diz Cecília.
Na capital federal, em uma casa com amplo espaço verde e ambiente tranquilo no Lago Norte, região residencial de classe alta, crianças com problemas de dependência química participam de atividades da ONG Transforme.
Em uma tarde, durante visita da Agência Brasil ao local, Alex, 14 anos, e Luís, 12, faziam origami sob a supervisão de uma moça que demonstrava paciência e calma. “Eu já fumei [crack]”. “Eu também, mais de cem vezes”, afirmam.
Segundo os meninos, praticamente a metade das crianças e adolescentes que vivem na rodoviária – localizada no início da Esplanada dos Ministérios – usam crack. ” Dos 25 que vivem lá com até 16 anos, 12 fumam”, conta Alex. “Fumei a primeira vez com 11 anos. É fácil conseguir”, lembra Luis.
Alex, o mais falante da dupla, afirma que ao terminar o tempo de internação na TransForme pretende concluir os estudos até se formar em medicina. “Eu parei de estudar na 3ª série. Pelas minhas contas, faltam uns 15 anos para eu me formar. Mas não estou com pressa, não vou desistir do meu sonho”, afirma, enquanto monta um cubo de papel alaranjado.
A psicóloga Rosimere Nere, que acompanha a aula de origami, diz que as crianças de rua tendem a demonstrar habilidades que não são percebidas por meio da educação formal, já que estão fora da escola. Uma espécie de criatividade desenvolvida pelo ócio.
“O traço marcante é a arte, a habilidade. O que precisa é fazer com que eles entendam que essa criatividade pode ser canalizada para coisas importantes e positivas”, afirma.
Durante a aula de educação física, o professor Douglas Antunes afirma que o mais difícil é impor regras. Por terem vivido a maior parte da vida na rua, as crianças têm dificuldade em se adequar. “Às vezes, reclamam, dizem que vão embora, que não querem ficar e obedecer. Eu digo 'Você acha que me emociona? Lá você vai dormir no chão e passar frio. Aqui tem piscina, aula de informática e seis refeições por dia. Pode ir se quiser'. A escolha é deles.”
Crianças e adolescentes das ruas do Brasil começaram a fumar crack no fim da década de 1980, especialmente nos estados da regiões Sul e Sudeste. Pesquisas do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) apontaram aumento no consumo em sondagens realizadas em 1987, 1989, 1993, 1997 e 2004.
Indefinição de tratamentos
Internação, medicamentos, grupos de auto-ajuda, espiritualidade. A indefinição para o tratamento de dependentes de crack abre o leque de possibilidades para os que procuram ajuda ou cura. A doença, chamada adicção, manifesta sintomas nas crises de abstinência, como tremores, forte agitação, suor excessivo e, em alguns casos, até reações violentas.
Os tratamentos têm, aos poucos, abandonado técnicas radicais, como amarrar o paciente e utilizar medicação forte para acalmá-lo, que estão sendo substituídas por alternativas cujo ingrediente principal é a força de vontade.
“A internação, na área de drogas, não é indicada para todos os casos. Depende muito das condições da família e da comunidade de abrigar esse usuário”, explica a professora Maria Fátima Sud Brack, do departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB), e coordenadora do Programa de Estudos e Atenção às Dependências Químicas (Prodec).
A inexistência de métodos eficazes comprovados de tratamento prejudicam o atendimento ao usuário de crack. “Há relatos de muitos psiquiatras que o crack chegou à classe média. E não temos protocolos de tratamento bem sucedidos. Profissionais desta área têm dito que ainda não estão consolidados mecanismos de tratamento”, diz o coordenador do Núcleo de Pesquisa em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), José Luiz Ratton.
Em função da forte debilitação causada pelo crack, a especialista da UnB afirma que os dependentes precisam de atendimento de urgência. Além disso, segundo ela, o tratamento é um quesito que desafia a área de saúde.
“Com o crack, o atendimento teve que mudar completamente, porque exige algo urgente. E não é uma desintoxicação clássica, com psiquiatras. É um atendimento, às vezes, de pronto socorro, de emergência. É uma questão de saúde nova que desafia a todos”, avalia a psicóloga da UnB.
O coordenador do Grupo Amor Exigente, em Brasília, César Ricardo Rodrigues da Cunha, é a favor da internação e acredita que o usuário crônico de crack deve ser tratado por uma equipe especializada, formada por psicólogos e psiquiatras, antes de começar uma terapia.
Ele critica ainda o atendimento prestado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Tirando clínicas particulares, não existe local especializado. Só o Caps, que faz um trabalho de redução de danos, trocando uma substância por outra [mais fraca]”, afirmou.
Os Centros de Atenção Psicosocial (Caps) fazem parte do programa de saúde mental do Ministério da Saúde. Na semana em que a reportagem da Agência Brasil procurou o ministério para saber como é feito o tratamento de dependentes químicos, a assessoria de imprensa do órgão informou que o coordenador da área não estava disponível para dar detalhes sobre o programa.
A assessoria explicou, por meio de nota, que o governo investiu, em 2008, mais de R$ 1 bilhão em todo o programa de saúde mental, mas não informou os valores específicos para o tratamento de dependentes químicos.
Segundo a especialista da UnB, entretanto, os serviços de saúde mental muitas vezes se recusam a aceitar dependentes de crack. “Você pode imaginar uma instituição de saúde que não aceita um usuário de crack? Já tive que encaminhar paciente e não pude dizer que era um dependente de drogas, senão não aceitava”, conta.
A socióloga Sílvia Ramos aponta que não há preparo para atendimento a dependentes químicos dentro desses centros. “Tenho verificado um atordoamento dos profissionais em centros de atendimento psico-social. Há um total despreparo. Ninguém sabe nem para onde levar um garoto que está usando crack”, afirma a especialista da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro.
Se o sistema público de saúde não apresenta respostas ao problema, os dependentes químicos procuram outras formas de se ver livre do vício. Foi em uma comunidade terapêutica evangélica que Carla, 30 anos, moradora de Brasília e ex-usuária de crack, procurou ajuda e despertou sua espiritualidade. Para ela, ler a Bíblia durante o tratamento foi fundamental para a recuperação.
“Em clínica, o tratamento é de 45 dias. Em comunidade terapêutica é de três a seis meses. Já tenho sete internações. Já vi gente usando droga dentro de clínica. Às vezes leva escondido, sai e volta com a droga”, afirma.