José Cícero – Ah, quem me dera ter o trem de volta!

Quem me dera ter o trem de volta! Quem sabe com o mesmo ufanismo que ele nos proporcionava no passado. Seria como que fizéssemos todos juntos, uma longa viagem no tempo pretérito sentados confortavelmente nas velhas poltronas do “sonho azul” ou até mesmo

O trem era um grande encontro social. Uma mistura de conceitos e concepções das mais extravagantes e necessárias para a devida compreensão da vida, do mundo e de nós mesmos. O mais alto e mais puro sentimento de se estar no mundo, como bem dissera certa feita o poeta. O trem era para muitos, uma autêntica dádiva de Deus com o desiderato de amenizar as agruras dos homens.



Quem me dera ter o trem de volta! Ouvir de novo as batidas do sino na estação nos dizendo que o mesmo não tardava a chegar ou que já estava prestes a partir. O eterno vai-e-vem da máquina de ferro, trazia e levava consigo sempre uma saudade dolente. Tristeza da partida, alegria do retorno carregado de notícias, riquezas, mercadorias e felicidades. A existência do trem oxigenava as nossas vidas com as suas repetitivas idas e vindas. Era ele, por assim dizer, um grande acontecimento social. Um agente da plebe humana sempre a desafiar as nossas monotonias. Um transgressor de toda a calmaria daquele nosso mundo interiorano. Dando amiúde, uma chacoalhada de entusiasmo nos nossos sentimentos capiau e provinciano.



Quem me dera ter o trem de volta! Como se nos fosse um mergulho profundo na memória. Um retorno aos mais belos e ditosos instantes da nossa meninice ingênua e descomprometida com a posteridade. Talvez uma nova chance para que pudéssemos aproveitar a contento, o melhor das coisas que deixamos para trás… Daquela mocidade alegre, embalada pelos ritmos alucinantes do êi, êi, êi da jovem guarda. Tudo o mais reverberando em nós com a mesma emoção juvenil com que participávamos das velhas e saudosos tertúlias ao som das discotecas dos velhos vinis(LP’s, compact-disc) e, mais adiante das fitas K-7. Como se de novo estivéssemos todos reunidos no banco da pracinha para ouvir as cornetas da difusora Voz do Cariri com Luiz de França e Juarez de Melo em Missão Velha. Ou nos anos idos da Aurora quando se ouvia com raro prazer a Voz do Uirapuru de Moacir Pinto, a Voz do Araçá de Moacir Leite, bem como a mais recente Voz da Cidade com Luiz Domingos, Nenê Saraiva, Erisvaldo Gonçalves, Argemiro Teodósio e tanto outros que noutros tempos emprestaram sua voz, assim como sua inteligência para formatar a gênese da nossa incipiente comunicação provinciana e paroquial. Uma novidade das mais empolgantes para uma época em que toda e qualquer tecnologia sempre estivera inacessível ao nosso Cariri; que não fosse tão somente, a existência, quase como uma graça, do próprio trem apelidado que fora, com o epíteto dos mais sugestivos para expressar a verdadeira identidade da alma sertaneja – o de Maria Fumaça. Uma novidade com a qual se orgulhava toda uma geração que ontem, muito mais do que hoje, sonhava e ansiava com unhas e dentes, puder mudar o mundo. Uma juventude sonhadora diante de uma realidade diferente quase sempre festiva, menos agressiva e civilizada.



Quem me dera ter o trem de volta! Para que com ele, pudesse me redimir das minhas bobagens ante o meu passado. Reconciliar com todas as minhas primeiras namoradas e os meus velhos amigos de infância, de colégio e de futebol. Ouvir de novo o som apaixonante da discoteca dos parques de diversão: Maia, São Severino entre outros. Afinal foram tantos… Curtir as velhas canções que emocionavam o nosso íntimo, bem como a lambada do malabarista circenses – Aldo Sena, Pinduca, Vieira, Solano… Sintonizar o dial da Educadora, Iracema e Progresso para saber em primeira mão das novidaes e dos grandes sucessos do momento que durariam o ano inteiro.



A música também nos vinha pelo trem. Velhos ‘bolachões’ embrulhados em papel de presente ou à mostra, para que todos o vissem e constatassem quão belo e maravilhoso era o colorido e as letras garrafais da sua capa sempre com a inscrição “Disco é Cultura”. E era mesmo… Que nos diga as poucas e célebres gravadoras como: Continental, Tapecar, RCA Victor, Eldorado,Columbia, CBS, RGE, Emi-Odeon, Phonogram dentre outras. Época de ouro, onde a indústria fonográfica primava pela qualidade e não pelo emburrecimento premeditado da sociedade.



Quem me dera ter de novo o ruído gostoso, outrora quase inaudível da velha radiola de maleta( a pilha) e de madeira postas no canto da sala como um troféu, animando com doces melodias o romantismo de toda uma época sem maiores preocupações.



Esta saudade vai muito além daquilo que a linha férrea pôde hoje nos levar. Esta saudade é o verdadeiro trem do passado nos remetendo ao longe como uma carruagem de fogo, queimando agora a nossa falta de bom-senso e de bom-gosto. Uma fantástica máquina do tempo a la Júlio Verne a nos carregar para o fundo de todo tempo que mais desejamos alcançar.



Quem me dera ter o trem de volta! Para que, de novo menino, pegasse eu, bigu no trem do tempo como dantes. Ou permenecesse de novo em meio a multidão de curiosos parados na pedra da estação à esperar aquele acontecimento cotidiano. A pedra da estação foi naquele tempo o coração das nossas cidades. Local onde a sociedade se fazia de vez, igualitária e sociável sem que para tanto precisasse de nenhuma lei imperativa. O primeiro exemplo prático da chamada democracia do povo. O ponto mais atrativo e visitado da nossa urbe populacional. O vértice de todos os grandes e pequenos acontecimentos de uma época sem muitas novidades. A central do fuxico. O cordão umbilical que nos ligava tanto ao mundo, quanto as notícias e as poucas novidades que nos chegavam da capital.



Na pedra da estação aprendemos a acreditar na lonjura geodésica do mundo e das grandes invenções do além-fronteira. A estrada de ferro era a nossa bússola através da qual(ricos e pobres) podiam enfim se situar no mundo da política, da cultura e na história. A linha de ferro nos levava tanto ao mar quanto ao centro da terra como algo nos ligando diretamente ao sonho de uma vida possível e menos enfadonha. Fazendo-nos assim acreditar na felicidade, não apenas como mera utopia, mas como perspectiva de um futuro de grandes realizações. O mundo, a vida, o coronel, assim como o deputado, o padre, o presidente andavam todos no nosso trem do passado. O desenvolvimento andava de trem. Até mesmo o medo de uma geração inteira viajava nos vagões do nosso trem.



Por tudo isso, diríamos por fim, que o trem era a própria dimensão que as nossas mais alvissareiras concepções ingênuas e futuristas davam a ele.



A pedra da estação era o nosso sonho de consumo mais imediato. O ponto central e nevrálgico da nossa paz sempre infinita. O momento alto das nossas paqueras. Espaço livre para os desejos incontidos, beijos, abraços, acenos de adeus, sussurros de prazer, lágrima de despedida, sorrisos de encontro, redundância de “vai com Deus”, negócios financeiros, namoricos, casos de amor escondidos, roubalheira, crime e castigo.



A pedra da estação era um instante eterno de felicidade e festa. Pegar o trem, assim como deixá-lo ali na plataforma era uma conquista. Quase um momento de absoluta celebração.



Era como se deixássemos o mais legítimo sentimento humanista povoar a nossa própria alma.



E uma vez dentro do trem, o mundo num passo de mágica, tomava um novo rumo… Ante os toques ritmados dos trilhos, o apito, o barulho das rodas sobre o ferro a deslizar para o oco do mundo. O balançar compassado do vagão, o freio, as coisas, os bichos correndo muito mais que nós. A lei da física fazendo de todos os passageiros da ilusão, meras cobaias para o devir. E nós, amando tudo aquilo do alto da nossa mais soberba ignorância ou quem sabe, doce ingenuidade.



O cobrador, o calor, o vento, o carro, as vilas e povoados às suas margens, rios, pontes e riachos, mata virgem, roceiros, espaços exíguo, cubículo cheio de gente como a própria pedra da estação que se deixou para trás. Tudo correndo, passando por nós tal qual o passado que ficou também a esperar por nós na pedra da estação.



Quem me dera ter o trem de volta! Para que na próxima estação pudesse de novo apreciar aquele formigueiro humano numa verdadeira exposição ao ar livre do que havia de melhor e mais tradicional na gastronomia cearense. Quisera degustar de novo, tanto com a boca quanto com os olhos aquele banquete da rica culinária sertaneja: O vendedor de água de pote bem dormida na quartinha com a aquele gostinho distante de barro. A macaxeira saborossíma de Missão Velha a que todos diziam ser do cemitério, talvez por só por isso fosse tão gostosa. Saborear de novo o pão-de-ló do Arrojado, o sequilho do Sabiá a se derreter na nossa boca. A banana quase afrodisíaca de Baturité, o café aromático do Alencar, o rolete da melhor cana do Cariri, a tapioca de Lavras, a cocada e o alfinim da Ingazeiras, a batida do Crato e o tijolo de buriti. O pastel mais inigualável do Ceará só encontrado na estação de Aurora feito como mágica pelas mãos de Dona Vicência Maciel. Assim como o milho assado, a pamonha do lugar, o almoço nas bancas de madeira na parada de Quixaramobim. O peixe do Salgado seco e assado, o bolo de milho, o fiós, o chapéu de couro, o café torrado no caco, o amendoim, a castanha de caju, o gole da água da cacimba na caneca de flande, a tábua de pirulito de mel, o quebra-queixo no papel de embrulho, o chá de capim-santo, erva cidreira, a sopa de frango-capado, a galinha caipira, a rapadura, o Chouriço, o doce de gergelim. Tudo isso formava o universo dos sabores da terra contidos nas inesquecíveis viagens de trem pelo nosso Ceará de uma ponta a outra.



Um vai e vem que muito contribuiu para o engrandecimento de toda a região caririense. Do Crato a Fortelaza e de lá até Sobral … Uma viagem, cuja saudade nem o tempo conseguirá apagar dos nossos sentimentos mais latentes. O trem portanto, é parte importante do nosso passado mais agradável, assim como das nossas reminiscências mais bonitas a tal ponto que as levamos conosco para sempre onde que estejamos.



O trem é toda a nossa memória afetiva, cujo fantasma do esquecimento total não haverá de apagá-la, porque pelo menos em nós, ela será eterna.



Difícil é se entender com qual maldade os nossos políticos, sob o lobismo dos magnatas dos transportes rodoviários e do poder político, em detrimento da maioria do povo, se dera a este ridículo papel de pôr um fim ao trem(cargueiro e de passageiro): símbolo maior do nosso progresso e da nossa história.



José Cícero é professor, escritor e Secretário de Cultura, Turismo e Desporto de Aurora-CE.