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STF extrapolou no julgamento da Raposa, diz Cimi

Com a conclusão do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Raposa Serra do Sol, o saldo das discussões traz a vitória da demarcação contínua para os índios. Mas, no rastro da decisão primordial, também é publicada uma lista de “condições”

Raposa Serra do Sol se torna, portanto, um marco de avanço e um “saco de maldades” – ainda amarrado – e que pode distribuir revés às conquistas indígenas. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), avalia que o julgamento extrapolou seu objeto inicial. Aliás, como defende o vice-presidente da entidade, Saulo Feitosa:


 


– A afirmação do ministro Gilmar Mendes, de que o STF está estabelecendo parâmetros para a demarcação de terra indígenas no Brasil, extrapola o objeto inicial do processo.


 


A decisão final do STF incluiu 19 condições para demarcação e uso das terras indígenas. Entre elas, regras para o ingresso de não-índios nas terras, atividades das Forças Armadas nos territórios e participação dos entes federativos nos procedimentos demarcatórios.


 


– Há, sim, problemas do ponto de vista das conquistas dos direitos indígenas, inclusive com contradições com a própria Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada e ratificada pelo Brasil.


 


Leia a seguir a íntegra da entrevista:


 


Após as 18 condições elaboradas no julgamento, uma 19ª apareceu no voto no ministro Gilmar Mendes para incluir o aval dos estados nas demarcações. Isso não pode inviabilizar demarcações em estados cujos governos sejam contrários aos índios?
Saulo Feitosa – Essa participação dos estados no processo já era prevista. Inclusive, com a publicação do decreto 1.775/96 isso já foi assunto amplamente discutido. Então, a participação dos entes federativos não é problema nenhum. Agora, a questão é como vai se dar essa participação. Porque tem os momentos específicos que pode haver essa participação. A gente entende que o trabalho do grupo é um trabalho técnico, com as pessoas que vão fazer o reconhecimento da terra indígena. Em princípio, então, não vemos novidades. Agora esperamos que aqueles estados que são, como o exemplo de Roraima, declaradamente contra os indígenas, não venham fazer uso político dessa condição para querer mais uma inviabilizar o processo demarcatório.


 


Mas a interferência é uma possibilidade real agora com esse julgamento?
É uma possibilidade. Depende da interpretação que vai ser feita. Por isso, estou dizendo que não havia necessidade de haver a condição 19 porque o decreto 1.775 prevê essa participação. Nessa conjuntura, em que há disputas e interesses dos estados, como foi Roraima sobre a Raposa Serra do Sol, aí sim a gente espera que não venha ser utilizado como pretexto para criar situações e inviabilizar o trabalho dos grupos técnicos.


 


O julgamento não era só para discutir a homologação contínua ou não da terra indígena Raposa Serra do Sol? Então porque se estabeleceu condições para isso?
O julgamento concluído confirma os limites estabelecidos pelo decreto de homologação da terra indígena, o que para nós é muito importante. Agora, essas posições postas, sobretudo a afirmação do ministro Gilmar Mendes de que o STF está estabelecendo parâmetros para a demarcação de terra indígenas no Brasil, extrapolam o objeto inicial do processo. O objeto da ação no pedido dos autores se referia aos limites da homologação da Raposa Serra do Sol. E como bem destacaram alguns ministros ontem… Primeiro, o ministro Joaquim Barbosa e também o próprio relator Ayres Brito que essa decisão não deveria ter se estendido para as demais terras indígenas no Brasil. Por isso que entendemos que a decisão extrapolou de fato e não caberia à Suprema Corte decidir sobre outras demarcações, inclusive as que ainda vão acontecer.


 


As condições vão contra os direitos indígenas na visão do Cimi?
Sim. Quando algumas condições retiram, por exemplo, autonomia das comunidades. Não consideram a consulta prévia às comunidades para a realização de projetos nas suas terras. Delegam a órgãos do âmbito federal o poder de decidir quem deve ou não ingressar em terras indígenas. Entre outras, achamos que há, sim, problemas do ponto de vista das conquistas dos direitos indígenas, inclusive com contradições com a própria Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, assinada e ratificada pelo Brasil.


 


Os problemas que as condições trarão são mais complicados do que a vitória da Raposa?
As condições estão postas, mas serão debatidas futuramente. E muitas delas só reafirmam direitos previstos na Constituição Federal.


 


Então, a demarcação da terra indígena em Roraima é um marco essencial por si?
Não só. Porque no momento em que o STF decide que a demarcação vai ser feita de forma contínua então as futuras demarcações então deveram ser feitas de forma contínua. Ficou caracterizada na fala de vários ministros que é a forma de demarcação, e só existe essa, questiona: essa terra é tradicional ou não é tradicional? Não há como metade ser e a outra não ser.


 


Na visão do Cimi, que terras indígenas podem ter discussões semelhantes daqui para frente?
O que há hoje ainda é uma demanda muito grande de terra indígenas a serem demarcadas. Muitas terras sequer contam da lista da Fundação Nacional do Índio (Funai). Na listagem do Cimi, temos terras que não constam da Funai porque ainda não tiveram iniciados processos de reconhecimento. De acordo com a nossa listagem, apenas cerca de 50% tem processo de demarcação concluído. Das mais de mil terras indígenas, a metade falta a conclusão: seja homologação, regularização fundiária ou mesmo o início do reconhecimento.


 


Existe alguma possibilidade de redução dos conflitos judiciais sobre terras indígenas após o julgamento desta quinta-feira?
Acho que desde a edição do do decreto 1.775/96 as disputas se multiplicaram. E eles tendem a se manter. Porque quando você disputa posse, há questionamentos desde a primeira instância da Justiça Federal até o Supremo Tribunal Federal. Não acredito que vá frear. A tendência é continuar por conta do avanço do agronegócio sobre as terras indígenas.


Terra Magazine