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Crise econômica global: o desejo e a realidade

Em Angola havia uma revista chamada Notícia que tinha por lema “Desejo o melhor, espero o pior e aceito de ânimo igual o que Deus quiser”. Recupero a frase para dizer que o debate sobre a situação da economia global parece ter entrado em uma f

Não faltam projeções, com base em dados controversos — como a alta venda de veículos, o que pode ser até efeito de uma desova de estoques —, sobre a superação da crise pelo Brasil antes do resto do mundo. Alguns “consultores” que ganham a vida — e muito bem, por sinal — prevendo o futuro claramante exageram. É o caso do ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega. 


 


Segundo ele, para a economia brasileira expandir 2% neste ano como o governo aposta teríamos que viver uma crescimento chinês. Mas encaixa a ressalta: os sinais de recuperação no Brasil são muito mais fortes do que em outros países. Mailson destaca que a indústria cresceu pelo segundo mês consecutivo. O consumo diminuiu, mas não parou e o crédito já começa a ser normalizado, se aproximando dos números pré-crise (antes de setembro). ''Tudo isso sinaliza para uma retomada da atividade econômica'', profetiza.


 


O presidente-executivo do Itaú Unibanco, Roberto Setúbal, também prevê que o Brasil deve crescer em torno de 3% em 2010, depois de ficar entre estabilidade e queda de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano. Segundo ele, o país não só vai sair mais rápido da crise como terá crescimento acima da média mundial. Por qual motivo, ele não disse.


 


Análise do presidente do Banco Central


 


Possivelmente sua análise se baseia no recente relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI), informando que a América Latina “acumulou muitas fontes de força e resistência ao longo desta década”. A defesa da receita neoliberal pelo Fundo é explícita ao considerar que os países da região fortaleceram “suas situações fiscais” e estruturaram “suas dívidas públicas, solidificando seus sistemas financeiros e sua regulamentação, reduzindo expectativas de inflação e construíndo bases políticas com mais credibilidade”.


 


O presidente do Banco Central (BC) brasileiro, Henrique Meirelles, faz essa análise não é de agora. Para ele, a ''vantajosa'' posição do Brasil está no fato de se tratar de um “credor líquido em nível internacional” e contar com grandes reservas financeiras. Segundo Meirelles, a boa situação do Brasil se baseia também na “solidez” das finanças públicas, fatores que dão ao país capacidade de enfrentar a restrição de liquidez internacional e financiar as exportações de suas empresas.


 


Quinta queda consecutiva do emprego industrial


 


Visto de outro ângulo, o cenário é outro. Os Indicadores Industriais recentemente divulgados pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostram que a massa salarial na indústria cresceu 0,3% no mês de março, em relação a fevereiro deste ano, mas recuou 1,8% na comparação com março de 2008. Foi a primeira queda da massa salarial na indústria desde janeiro de 2007, quando a CNI iniciou a comparação anual, conforme afirmou o economista-chefe da entidade, Flávio Castelo Branco.


 


Segundo ele, o emprego industrial caiu 0,7% em março, frente a fevereiro, na quinta queda consecutiva — o que mostra perda de fôlego da atividade industrial. Na comparação trimestral, o nível de empregos recuou 2,6% de janeiro a março, em relação ao quarto trimestre de 2008, e foi de menos 1,4% ante o primeiro trimestre do ano passado. A incidência foi maior agora porque a atividade recuou fortemente de novembro de 2008 a janeiro deste ano, segundo Castelo Branco.


 


Utilização da capacidade instalada


 


A pesquisa mensal da CNI mostra também que o número de horas trabalhadas foi 0,2% menor em março, em relação a fevereiro. No trimestre, a queda de horas trabalhadas chegou a 5,6%, comparado ao período de outubro a dezembro de 2008. Já o faturamento real da indústria nacional recuou 1,6% em março com relação ao mesmo mês do ano passado. É a primeira vez em seis anos que o faturamento registra queda no mês. No acumulado do primeiro trimestre, o indicador registrou queda de 7,6% ante o mesmo período de 2008.


 


Os números da CNI mostram alguns avanços, como a utilização da capacidade instalada (UCI) que registrou crescimento de 0,5 ponto percentual em março para 78,7% após cinco meses seguidos de queda, mas insuficiente para afirmar o início da recuperação da atividade industrial. De acordo com a CNI, os avanços ''se deveram, em grande peso, pela fraca base de comparação''. Além disso, a entidade ainda vê a recuperação com cautela porque ''o crescimento desses indicadores ainda não é acompanhado pelas variáveis de horas trabalhadas e emprego”.


 


Arena macroeconômica dos Estados Unidos


 


O ponto aqui é: é possível uma recuperação nacional sem levar em conta a dimensão da crise nos gigantes da economia mundial? Dificilmente. Como lembra Nicolau Santos, no jornal Expresso, a Europa, os Estados Unidos e o Japão representam 63% do PIB mundial, mesmo em recessão. A China contribui com 6,5%, a Índia 3,5%, o Brasil 3%. Ou seja: 13% no total. Conclusão que parece lógica: ou os 63% recuperam ou os 13% vão sofrer e amargar também muito com a recessão. É por isso que esta crise global só pode ter uma resposta global.


 


Outro detalhe de suma relevância: a arena macroeconômica dos Estados Unidos está montada para ser o centro da órbita do planeta. E a necessidade de financiamento do balanço de pagamentos norte-americano impacta de forma negativa a política monetária e não sai de graça para o mundo. Com o tempo, o déficit comercial promove alterações silenciosas, nem sempre perceptíveis, mas altamente relevantes nas rotas do comércio mundial.


 


Buraco no qual o sistema financeiro enfiou o país


 


A raiz da crise dos Estados Unidos é o seu endividamento público e externo. O mecanismo de antecipação de renda futura para financiar o presente, iniciado na época do governo do presidente Ronald Reagan, chegou ao seu limite. O país é o maior devedor líquido do mundo e a dívida cresce de forma alucinada e descontrolada. Mas o maior problema é a dificuldade crescente de financiar os déficits interno e externo provocados pelos juros decorrentes deste endividamento — os Estados Unidos também passaram a enfrentar o problema da vulnerabilidade externa.


 


Internamente, os Estados Unidos tentam desesperadamente sair do buraco no qual o sistema financeiro enfiou o país. Em recente artigo na página de opinião do jornal The New York Times, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Timothy Geithner, disse que “por causa da preocupação quanto a perdas futuras e da transparência limitada dos balanços patrimoniais, os bancos estavam incapazes de levantar capital e achavam difícil tomar empréstimos sem garantias do governo”.


 


Situação ainda completamente indefinida


 


Trocando em miúdos: o “teste de estresse” que apontou dez das 19 maiores instituições financeiras com necessidade de levantar pelo menos US$ 75 bilhões para não fecharem as portas mostrou uma situação ainda completamente indefinida. O artigo diz ainda que “o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) reuniu centenas de supervisores para passar 45 dias revisando com rigor os dados detalhados dos créditos dos bancos”.


 


O economista e Prêmio Nobel Paul Krugman comentou o assunto em sua coluna no jornal The New York Times. Ela ressalta que sua intenção não é julgar a qualidade do “teste de estresse”, mas escreve que muitos observadores notaram ''a falta de recursos dos reguladores para fazer uma avaliação cuidadosa dos ativos bancários''. No entanto, ''focar no processo pode provocar distração frente a um panorama maior'', destaca Krugman. ''A economia norte-americana pode se recuperar mesmo com bancos fracos?'', pergunta.


 


Possibilidade de um déjà vu no horizonte


 


Segundo ele, caso a economia continue em depressão por muito tempo os bancos terão muito mais problemas do que os que o “teste de estresse” pode capturar. Se as perdas são correntes no presente, elas podem se multiplicar no futuro, diz ele. De acordo com o economista, a falta de vontade evidente de Washington, tanto na estatização dos bancos quanto para deixar as instituições financeiras falirem, mostra que a regulação sobre Wall Street e um controle mais rígido dos lucros caíram por terra.


 


Para Kugman, caso tudo ocorra bem os bancos vão ganhar bastante. Caso contrário, os contribuintes serão forçados a pagarem outro resgate. Nas linhas conclusivas, Krugman não descarta a possibilidade de um déjà vu no horizonte. Ou seja: de que o futuro repita o passado. Para ele, enquanto o governo continua insistindo no comprometimento de uma regulação maior no sistema, Wall Street toma estes sinais como indícios de que os lucros estratosféricos e irreais poderão voltar a existir, assim como antigamente. ''Como eu falei, enquanto banqueiros podem achar os resultados dos testes de estresse 'reasseguradores', o resto de nós deve ficar com muito medo'', conclui Krugman.


 


Indicadores revelam um panorama desolador


 


Enquanto isso, alguns indicadores revelam um panorama desolador. Os créditos ao consumidor concedidos nos Estados Unidos caíram em março em relação a fevereiro, com uma baixa de 5,2% ao ano (de US$ 11,1 bilhões), segundo cifras corrigidas por variações sazonais, publicadas pelo Fed. Os Estados Unidos não registravam uma queda tão forte desde a recessão de 1990, quando o índice caiu 8,1%, em dezembro.


 


A queda de fevereiro revisada, originalmente informada como sendo de US$ 7,5 bilhões, foi de US$ 8,1 bilhões. O crédito não-rotativo, o que inclui empréstimos fechados para financiamento de itens como automóveis, barcos, educação superior e férias, caiu em US$ 5,7 bilhões, ou, com uma taxa de 4,2%, para US$ 1,6 trilhão. Já o crédito rotativo, como o de cartão de crédito, caiu US$ 5,4 bilhões, ou, com uma taxa de 6,8%, para US$ 946 bilhões. Isso, em comparação com a queda revisada de fevereiro, de US$ 9,7 bilhões.


 


Lei, denominada “dinheiro por ferro-velho”


 


Outro setor que não dá sinais de recuperação é o automobilístico — vital para a economia norte-americana. A montadora Chrysler está oferecendo incentivos de até US$ 6 mil em cada veículo para tentar vender mais carros. As vendas da montadora norte-americana desabaram 48% em abril em meio a dúvidas sobre sua sobrevivência. A situação da Chyrsler é só uma amostra da gravidade da crise.


 


Para tentar socorrer o setor, o presidente Barack Obama e os líderes democratas do Congresso fecharam um acordo sobre um projeto de lei que visa o incentivo à venda de veículos, que sofreu a pior queda em cerca de 30 anos. A lei, denominada “dinheiro por ferro-velho”, autoriza um plano de um ano que oferece bônus de até US$ 4.500 para quem vender o veículo usado e comprar um modelo novo. A meta é incentivar a compra de um milhão de veículos novos nos próximos 12 meses.


 


Não há motivos para otimismos exagerados


 


Outro indicador negativo é a taxa de desemprego, que subiu para 8,9%, frente a 8,5% em março — segundo o Departamento do Trabalho. Desde o inicio da recessão, em dezembro de 2007, foram eliminados 5,7 milhões de empregos. Nos últimos 12 meses, o número de pessoas desempregadas cresceu para 6 milhões e a taxa de desemprego avançou em 3,9 pontos percentuais.


 


Ou seja: não há motivos para otimismos exagerados. Referindo-se aos discursos que tentam ser otimistas nos Estados Unidos, o prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz afirmou que “estão tentando fazer o jogo da confiança, mas a verdade é que a realidade não é muito favorável”. O economista traçou dois cenários para a evolução da economia.


 


Atuação do setor financeiro norte-americano


 


Um, que classificou de “otimista”, é a entrada “em uma doença ao estilo japonês”, com bancos ''zumbis'' e crescimento econômico estagnado durante um período longo do tempo. A outra, “mais pessimista”, é a eclosão de novas crises (relacionadas, por exemplo, com segmentos do mercado de crédito em dificuldades), que podem levar a economia a “regressar a uma queda livre”.


 


Stiglitz criticou duramente a atuação do setor financeiro norte-americano, falando de uma “corrupção ao estilo americano” para explicar a forma como os dirigentes políticos do país permitiram a desregulação do sistema, e de uma “luta de classes contra os pobres” para explicar a maneira como os bancos apostaram na transferência de rendimentos da “base da pirâmide para o topo”.


 


Redução drástica do spread e da Selic


 


Segundo ele, a economia mundial ainda vai viver uma fase de recessão duradoura e disse recear que não tenham sido tiradas lições da crise financeira. “Estamos agora ultrapassando a pior fase, passando de uma situação de queda livre das economias para uma recessão muito profunda”, afirmou. “Podemos ter certeza que iremos viver ainda uma fase de recessão bastante demorada”, acrescentou.


 


Falando em um evento que debate a crise em Portugal, Stiglitz deu dicas ao governo local que podem ser aplicadas também no Brasil. Para ele, é preciso apostar em políticas que facilitem o acesso ao crédito, como medidas que baixem o spread. No caso do Brasil, podemos acrescentar a urgência da redução da taxa básica de juros, a Selic, pelo BC — uma possibilidade que o país não explora de maneira suficiente. Se houvesse redução drástica do spread e da Selic, aí sim poderíamos dizer que o Brasil teria reais condições de sair mais rapidamente da crise.