Milton Hatoum: Com Chico Buarque na Flip
Não foi fácil participar de uma mesa com Chico Buarque na Festa Literária Internacional de Paraty. O assédio a um dos artistas mais talentosos e queridos do Brasil inibe qualquer um. Leitores e fãs viajaram das cidades mais distantes para ver e ouvir C
Publicado 21/07/2009 18:29
Alguns leitores subiram em árvores para fotografar seu ídolo, e por pouco não se jogaram lá de cima. Essa idolatria — que revela um grau exacerbado de admiração — é compreensível. Mas o foco do debate, com a ótima mediação de Samuel Titan Jr., foi mesmo a literatura, como o leitor pode constatar na internet.
Entre vários recursos técnicos bem realizados, duas coisas me impressionaram no romance Leite Derramado: a concisão da obra e a linguagem que forjou esse mandamento da brevidade. Em 200 páginas, a vida de Eulálio e de várias gerações da família Assumpção são evocadas por pinceladas rápidas, mas fortes.
No excelente texto da orelha, Leyla Perrone-Moisés assinalou justamente essa originalidade em relação ao gênero literário. Sagas romanescas pedem centenas de páginas, quando não vários volumes em que se expandem os conflitos e as mudanças de sucessivas gerações de uma família. Chico fez de uma saga balofa um romance fino, e o que poderia ter sido um mural ou painel, reduziu-se a uma bela iluminura.
Na fala delirante de um personagem senil — que às vezes lembra um velho patriarca de García Márquez —, o leitor se depara com personagens de vários estratos sociais do Rio de Janeiro. No tempo em ziguezague da narrativa, o Rio é a sede da corte portuguesa, a capital da República e também a metrópole ferida pela violência da ditadura. Ou seja, é uma cidade em diferentes momentos de sua história, antes e depois da fundação de Brasília.
Em apenas 90 minutos de debate não foi possível abordar alguns aspectos do romance de Chico. Um dos mais interessantes é a oralidade. O velho Eulalio se dirige a sua filha e às enfermeiras do hospital, mas é o leitor quem ouve essa voz, cuja inflexão melódica é pontuada pela dicção do narrador. O romancista francês Ferdinand Céline disse que um escritor deve encontrar sua “petite musique”, ou seja, sua voz narrativa. Esse é um dos achados bem urdidos do Leite Derramado: a voz de quem conta a história em sintonia com a matéria narrada.
A repetição de cenas e situações — que reflete as hesitações e lacunas da memória —, a construção de frases coloquiais em contraponto com um vocabulário anacrônico, a confusão de personagens na mente nebulosa de Eulálio, as palavras e expressões pronunciadas com ar pedante em francês, tudo isso dá forma e consistência ao tom do narrador. Nesse sentido, a maestria do músico, cantor e compositor foi usada pelo escritor.
Por coincidência, a novela Órfãos do Eldorado tem afinidades temáticas e no modo de narrar com o romance de Chico. Isso provocou uma bem-humorada acusação mútua de plágio. Chico leu meu livro pouco tempo antes do evento da Flip, e durante o debate ele disse, apontando para mim: Esse cara me copiou.
No Leite Derramado há uma negociata em torno da concessão do Manaus Harbour durante o ciclo da borracha. O episódio, como revelou Chico, foi contado pela mãe dele, e dizia respeito a um conhecido da família. Na mesma época, Amando Cordovil — pai do narrador do Órfãos do Eldorado — também se envolveu com a concessão da rota de um cargueiro entre Manaus e a Europa. Mais do que um plágio literário, esses dois episódios revelam as “tenebrosas transações” de norte a sul do país.
Não por acaso, o título dessa mesa da Flip era “Sequências brasileiras”. As tenebrosas transações dentro e fora do Senado e da Câmara revelam que o Brasil de ontem não é muito diferente do atual. Refiro-me à impunidade e à imunidade parlamentar, essas duas pragas que emperram qualquer tentativa de transformar o país numa verdadeira democracia.
* Milton Hatoum é escritor, autor dos romances Órfãos do Eldorado, Dois Irmãos, Relato de um Certo Oriente e Cinzas do Norte