Memória: Livro "Olho pro Olho" fala sobre Ditadura no Brasil

A derradeira batalha entre a esquerda e a ditadura militar. Assim o jornalista Lucas Figueiredo descreve, em "Olho por Olho", a incrível história do "Brasil Nunca Mais" e do "Orvil", o livro-resposta secretamente articulado pelos generais, que jamais chegou às livrarias. Com matéria de Dawlton Moura, o Diário do Nordeste nos conta apresenta este documento de resgate da memória brasileira.

Ditadura

No calor de uma guerra, a conquistaos corações e mentes é tão difícil – e essencial – quanto o xadrez dos campos de batalha. O modo pelo qual a história olhará para trás e recontará capítulos importantes de um passado que, para muitos, ainda não acabou de passar foi o mote da última trincheira no confronto entre a ditadura militar no Brasil e os militantes de esquerda que a ela resistiram, em várias frentes. Uma realidade de contornos tão dramáticos e espetaculares que dificilmente poderia ser alcançada pela ficção.

É essa a sensação que vem da leitura de "Olho por Olho – Os Livros Secretos da Ditadura", mais recente trabalho do jornalista mineiro Lucas Figueiredo, que inscreveu seu nome na crescente lista de bons autores de livros-reportagem a partir do mergulho nos subterrâneos da relação entre o ex-presidente Fernando Collor e seu tesoureiro Paulo César Farias, em "Morcegos Negros" (2000). Bem mais objetivo, embora tratando de um período histórico mais extenso e complexo, o novo livro cuida de arrebatar o leitor a partir da impressionante dimensão dos próprios fatos que cercam o tema: o enfrentamento entre protagonistas do regime e combatentes da ditadura pela forma como seria construída a memória nacional em torno do período que se estendeu de 1964 a 1985. E que neste momento enseja outras lembranças e debates – tão dolorosos quanto delicados – quando se lembram os 30 anos desde a Anistia.

Se Elio Gaspari traçou uma ampla radiografia do regime e de seus bastidores em quatro extensos volumes, dividindo-se entre informações e reflexões, investigações e hipóteses, o livro de Figueiredo aparece como uma incisão mais definida, reconstituindo o período pelo fio da concepção, do planejamento, da execução e dos diferentes finais que tiveram os dois projetos concorrentes na batalha por influir na forma como essa página da nossa história viria a ser contada. Em pontos de vista extremamente opostos, mas, ironicamente, também ora entrecruzados, ora surpreendidos ao alimentar de informações estratégicas o exército inimigo.

Os dois "personagens" fundamentais, por assim dizer, são justamente os livros arquitetados, ambos secretamente, para defender o olhar de cada lado sobre essa história. Primeiramente, o "Brasil: Nunca Mais", que através da denúncia das atrocidades cometidas, em nome de uma política de Estado, por diversos órgãos do aparato de segurança pública e manutenção da ordem, se tornou um marco internacional na luta pelos direitos humanos. Idealizado por religiosos e advogados, com financiamento vindo do exterior, o livro que cumpriu um imprescindível papel histórico ao listar centenas de vítimas de crimes como tortura e assassinato durante a ditadura renderia, por si, inúmeras histórias sobre seu "modus faciendi". Uma notável articulação entre entidades e profissionais imbuídos da mesma certeza: a necessidade de produzir uma fonte de informações, lastreadas em provas, sobre as atrocidades dos tempos de exceção, antes que os documentos oficiais que as registravam desaparecessem, nos estertores do regime.

Mas há mais. Invocando a lei de Talião, parte dos generais que estiveram no núcleo do poder entendeu ser necessário responder no mesmo tom à avassaladora repercussão gerada pelo "Brasil: Nunca Mais", a partir de sua publicação, em 1985, tão logo o regime institucionalizou o próprio fim. Se o livro enterrava de vez a noção de "país pacífico", denunciava os crimes cometidos por brasileiros contra brasileiros, com a chancela do Estado, e provocava um novo olhar (nada positivo) da sociedade sobre os militares, era preciso dar o troco na mesma moeda. Assim surgiu a idéia do que um dia teria a forma de páginas encadernadas, com capas pretas de letras douradas, sob o título de "O Livro Negro do Terrorismo no Brasil". Ou, mais sinteticamente, pelo nome com que o projeto foi designado internamente, alimentando toda uma "mitologia" iniciada em questionamentos sobre sua real existência: "Orvil". Não por acaso, a palavra "livro" escrita de trás pra frente.

Com as armas do inimigo

"Ninguém até hoje sabe exatamente como foi possível, mas o fato é que o plano deu certo". Assim Lucas Figueiredo sintetiza o resultado da empreitada movida por religiosos e advogados para reunir a enorme quantidade de informações que dariam origem ao "Brasil: Nunca Mais". Uma missão extremamente intrincada, dado o objetivo de confeccionar um registro definitivo e irrefutável dos casos de desrespeito aos direitos humanos durante a ditadura – com especial atenção à prática da tortura como freqüente "método de trabalho" da repressão aos "subversivos", "terroristas", "comunistas" ou mesmo a quem, não cabendo em nenhum desses rótulos, se via investigado como "elemento de risco à segurança nacional".

O ponto-chave da missão estava na definição de que, para que tivesse o maior impacto possível e escapasse a questionamentos quanto ao conteúdo informativo, o documento teria de ser baseado nos registros oficiais do próprio inimigo. O plano era buscar as informações do Estado sobre as investigações de pessoas e entidades relacionadas à resistência para provar a prática de prisão, tortura e assassinatos, pelos órgãos de segurança, e ao mesmo tempo dimensionar o número de casos ao longo do regime.

Ironicamente, o próprio governo, ainda durante a ditadura, deu aos idealizadores do livro a matéria-prima de que necessitavam para realizar seu projeto "tão ambicioso quanto improvável", na descrição de Lucas. A partir de março de 1979 o governo Figueiredo, enfim ampliando as liberdades da "distensão" proposta por Geisel, facilitou o acesso de advogados ao arquivo de processos do Superior Tribunal Militar.

"Nessa época, o STM era uma espécie de depósito das esperanças e das desgraças dos opositores do regime. Isso porque, como os ´subversivos´ condenados em cada uma das 12 auditorias militares estaduais (a primeira instância) tinham direito a recorrer ao Superior Tribunal Militar (a segunda instância), era lá que acabavam sendo arquivados quase todos os processos políticos", assinala Lucas. O autor lembra que a promulgação da Anistia, cinco meses depois, forneceu mais um argumento para os interessados em remexer a "contabilidade do inferno".

A partir daí, o autor descreve como advogados como Luiz Eduardo Greenhalg e Eny Raimundo Moreira, impressionados com os depoimentos sobre tortura contidos nas toneladas de provas que o regime acabou produzindo contra si mesmo, engajaram-se na missão de "clonar" os arquivos do STJ. Uma tarefa realizada com o apoio de religiosos como o reverendo Jaime Wright e o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.

Brasil: Nunca Mais X Orvil – Fatos e Versões

Jaime Wright e Dom Paulo Evaristo Arns levantaram fundos no exterior (o dinheiro trazido para financiar  o projeto e entregue em parcelas para o pagamento dos funcionários encarregados de microfilmar, copiar e classificar os processos recebia o nome-código de "chocolate", nos sigilosos telefonemas entre os envolvidos) e montaram uma equipe de profissionais especializados, para dar conta da hercúlea tarefa. Tudo a partir do período de 24 horas, durante o qual cada advogado podia retirar oficialmente do STM um das dezenas de milhares de processos do Tribunal. Imagine-se, pois, o tamanho do desafio.

Envolvendo uma logística apurada, cuidados de segurança e reserva comparáveis à disciplina e à compartimentalização de tarefas das organizações militares, o grupo conseguiu transpor praticamente todo o arquivo do STM. Para dar conta de processos que envolveram na Justiça Militar mais de 17 mil réus (dos quais mais de 3.600 foram presos e mais de 1.800 declararam em juízo terem sido torturados), foram necessários seis anos. A consolidação dos dados beirou as 7 mil páginas e uma versão ampliada chegou a ser distribuídas para algumas instituições e entidades, no Brasil e no exterior.

Mas foi o livro de capa vermelha, editado em algumas poucas centenas de páginas em julho de 1985 e intitulado "Brasil: Nunca Mais", em inspiração a um documento argentino de teor semelhante, a verdadeira bomba contra os quartéis, provando, com as armas do inimigo, o assassinato de cerca de 400 presos políticos (dos quais 135 "desaparecidos") e a tortura de milhares. Quatro meses depois do lançamento, os 444 agentes da repressão denunciados como torturadores teriam seus nomes anunciados à imprensa, complementando a missão do livro.

Finalmente, os algozes dos porões de outrora ganhavam um rosto, à luz do dia. "Em todo o País, torturadores passaram a ser apontados na rua e alguns chegaram a perder o emprego", registra Lucas Figueiredo, anotando, porém, que apesar dos dados contundentes do "Brasil: Nunca Mais" o numero de punições foi pequeno. "Na maior parte dos casos, os carrascos, seus chefes e auxiliares pagaram apenas com a exposição pública de seus pecados", delimita, levantando uma questão para a qual, 30 anos depois da Anistia, o Brasil ainda não parece ter encontrado uma resposta satisfatória.

"Orvil": o contra-ataque

"Depois de 21 anos no poder, tudo que os militares queriam era esquecer. Ou melhor: selecionar as lembranças daqueles 7.654 dias. Seria melhor para todos que fosse assim, diziam eles", ressalta Lucas, destacando também que "no meio civil, também não eram poucos os que, por conveniência, prudência ou tibieza, tinham optado por olhar exclusivamente para a frente, deixando de examinar de forma mais severa os atos do regime militar. Mexer no passado, pensavam, não era um bom negócio".

O "Brasil: Nunca Mais", porém, rompeu ruidosamente com a tentativa de esquecimento. "A caserna se enfureceu com a revelação em praça pública dos pecados mais bem guardados do regime militar", aponta o autor, citando o particular incômodo do ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves. Desalentado com a forma como "homens que haviam colocado a própria vida em risco no combate ao terrorismo e à subversão" eram tratados como "bestas-feras" pela publicação da esquerda, Leônidas estaria para o "Orvil", nome-código do livro com o qual militares resolveram dar sua versão da história, assim como Dom Paulo esteve para o "BNM".

Descrevendo como Leônidas organizou o levantamento de dados para o livro-resposta, "Olho por olho" chama especial atenção para um dos argumentos mais fortemente levantados pelos militares, para descredenciar o "BNM", apontando-o como deliberadamente parcial. "Além de pintar os opositores do regime com tintas suaves, tratava-os indiscriminadamente como heróis da democracia. Nos quartéis, porém, Leônidas e seus companheiros questionavam as intenções dos devotos de d. Paulo: será que era mesmo democracia que os opositores do regime militar queriam? Ou tudo não teria passado de luta pelo poder?".

Para embasar sua leitura da história, os generais se debruçaram sobre o projeto de seu próprio livro, destinado a denunciar os crimes cometidos do outro lado do front pelos militantes de esquerda e a registrar que, "entre as vitimas pranteadas no ´BNM´, havia guerrilheiros treinados nas academias militares de Pequim, Moscou e Havana". "Os militares se perguntavam por que d. Paulo tratara as organizações de esquerda armadas como heróis se todas elas, sem exceção, renegavam o regime democrático. O que essas organizações queriam – e isso o ´Brasil: Nunca Mais´ não dizia – era que depois da ditadura dos militares viria a ditadura do proletariado, a ditadura das massas", reconstitui Figueiredo.

Os arquivos do Centro de Informações do Exército, aponta o autor, foram uma das fontes essenciais de material para o que viria a ser o "Orvil", assumindo a tarefa por ordem do ministro Leônidas. Ao cabo de dois anos, com uma equipe de 30 integrantes, semelhante em número à do "BNM", o livro ficaria pronto, com 919 páginas nas quais finalmente os militares quebravam o silêncio e davam sua versão para a repressão e a luta armada na derradeira ditadura brasileira. "O CIE, por ordem de Leônidas, estava de volta à guerra. Só que dessa vez não lutaria com fuzis, câmaras de tortura ou agentes infiltrados. Usaria palavras".

Palavras em grande parte arregimentadas pelo coronel Agnaldo Del Nero Augusto, ajudado na empreitada por três oficiais e outros seis agentes do CIE, cujo arquivo tem sua vastidão enfatizada em "Olho por Olho". "O 1 milhão de páginas acumulado pelo ´BNM´ era troco comparado ao acervo do CIE. Neste, havia não apenas toda a papelada produzida pelo órgão nos seus 18 anos de existência como também cópias de documentos cedidos por outros organismos da chamada comunidade de informações (SNI, Cisa, Ciex, DOI-Codi etc)", assinala. Inúmeros processos de presos políticos, inquéritos e matérias de jornais e TVs e livros de autores como Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis foram incluídos no "megainventário", sucedido pela realização de entrevistas com policiais e oficiais militares que atuaram "tanto em cargos de comando quando de combate". (DM)

Com as mãos no "Orvil"

Com o trunfo de ter tido acesso em 2007 a uma das 15 cópias produzidas do "Orvil", livro cuja existência nunca havia sido confirmada, Figueiredo passa então a cotejar vários episódios, contrastando a versão dos "BNM" e a dos militares. Mostrando como os generais catalogaram dezenas de grupos de esquerda, da Ação Popular à Vanguarda Popular Revolucionária, e enumeraram diversos casos de militares assassinados pelos "subversivos". "Porém, essas pessoas mortas e feridas (…), por serem inocentes e não terroristas, não estão incluídas na categoria daquelas protegidas pelos ´direitos humanos´ de certas sinecuras e nem partilham de uma ´humanidade comum´ de certas igrejas", registrava a introdução do "Orvil", fazendo referência direta às palavras do cardeal Arns no "Brasil: Nunca Mais".

"Violência: Nunca Mais" era a "palavra de ordem" proposta pelo livro, que "exporia a tese de que a Igreja e os movimentos de direitos humanos, infiltrados pelo comunismo, protegiam criminosos e assassinos". Narraria também, com indisfarçável orgulho, como "subversivos encontraram a morte pelas mãos da repressão". Entre eles, cearenses como Bergson Gurjão Farias, cujos restos mortais serão sepultados em Fortaleza, com honras de Estado, no próximo dia 6 de outubro, após décadas de espera dos familiares do militante que tombou na Guerrilha do Araguaia, em junho de 1972.

"Ao todo o ´Orvil´ citava 1.700 ´subversivos´ e dava a todos o mesmo tratamento: inimigos no passado, inimigos também no presente", destaca Lucas, dedicando um capítulo à versão do "Orvil" para a morte de guerrilheiros como Bérgson e de outros militantes. Relatos que acabariam por configurar uma confissão do exército sobre a própria responsabilidade quanto ao destino de pelo menos 24 das pessoas oficialmente tidas por "desaparecidas" durante o regime. "Se o ´Orvil´ fosse público na época, os parentes das vítimas, a Justiça e o governo federal veriam que o Exército sabia muito mais do que dizia".

Estendendo seus relatos até 1987, o "Orvil", porém, nunca viria a público – ao menos, não da mesma forma que o "espelho" que o inspirou. A publicação do livro foi vetada por um receoso primeiro presidente da redemocratização. "´Para que criar um problema que não existe?´, ponderou Sarney (…) Não fazia sentido despertar rancores naquele momento; as feridas, tanto de um lado quanto de outro, começavam a cicatrizar. O melhor para o Exército e para o país, afirmou Sarney, era que Leônidas esquecesse aquele livro. O general não gostou do que ouviu, mas como bom soldado engoliu a seco a ordem do comandante".

Com a decisão, o "Orvil" seguiria anos a fio como o controverso "livro secreto do exército". Hoje disponível na Internet, o livro engavetado também motivou diversas outras publicações de militares que tentaram cumprir a seu modo a missão original. Trinta anos após a Anistia, os ecos de mais este embate dos anos de chumbo seguem se fazendo ouvir. (DM)

Mais informações

O "Orvil" está disponível na Internet ( www.averdadesufocada.com) assim como a versão integral do "Brasil: Nunca Mais" (www.armazemmemoria.com.br).

Serviço
"Olho por olho" – Lucas Figueiredo
R$ 39,90 / 210 PÁGINAS / 2009 / Editora Record

Fonte: Diário do Nordeste