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Uri Avnery: Um regime sob ocupação pode virar colaboracionista

É tudo, claro, culpa do juiz Richard Goldstone. Ele é culpado disso, uma vez que é culpado de todos os outros males que agora nos sucedem.

Por Uri Avnery, para o Gush Shalom

Ele é culpado dos problemas que estamos ter na ONU, em Nova Iorque e em Genebra. Pela conspiração para levar os nossos líderes políticos e militares a julgamento em Haia. Pela crise em curso entre nós e a Turquia. Pelas muitas iniciativas em todo o mundo para organizar um boicote contra Israel.

Agora, ele também tem culpa pelo perigo existencial que Mahmud Abbas (Abu Mazen) enfrenta.

Quando o relatório Goldstone foi apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, o nosso governo decidiu fazer tudo o que podia para evitar até mesmo um debate sobre ele.

O debate foi, evidentemente, exigido pelos palestinos. Quando o relatório foi publicado, o representante palestino em Genebra fez o óbvio: exigiu que o relatório fosse debatido com vista a submetê-lo ao Conselho de Segurança, que por sua vez o submeteria ao Tribunal Internacional de Haia.

O que veio a seguir poderia ter sido previsto. O governo israelense exerceu forte pressão sobre os EUA. Os EUA exerceram forte pressão sobre Mahmud Abbas. Abbas cedeu e instruiu o seu representante em Genebra para retirar o seu pedido para um debate.

Em qualquer outro assunto, isso teria passado tranquilamente. Mas como o assunto era a guerra de Gaza, a opinião pública palestina explodiu. Durante a guerra, cada palestino na Cisjordânia viu na al-Jazeera e nas outras cadeias árabes, a cada dia, a cada hora, as atrocidades da guerra, os corpos mutilados de mulheres e crianças, as escolas e mesquitas destruídas, as bombas de fósforo branco.

Para os líderes do Hamas, a ordem de Abbas para retirar o pedido foi uma dádiva de Alá. Caíram sobre Abbas com fúria incessante. “Traidor”, “colaborador”, “Subcontratado dos assassinos sionistas” foram os epítetos mais moderados. Encontraram eco em muitos palestinos que não são necessariamente simpatizantes do Hamas.

A posição legal de Abbas é débil. Segundo uma versão, o seu mandato expirou há muito tempo. De acordo com outra, vai expirar em alguns meses. Seja qual for o caso, será obrigado a realizar eleições em breve. Nesta situação, ele não pode permanecer indiferente a um recrudescimento da opinião pública contra ele. Assim, ele retirou a conclusão lógica: instruiu o seu representante de Genebra para renovar o seu pedido para um debate sobre o relatório Goldstone. Isto terminou ontem com uma resolução para remeter o relatório à Assembleia Geral da ONU.

O nosso governo frustrado reagiu furiosamente. Os meios de comunicação orquestrados declararam Abbas um “ingrato”, até mesmo um hipócrita. Afinal de contas, não exortou ele os israelenses durante a guerra de Gaza a intensificar os seus ataques contra a população de Gaza, a fim de derrubar o Hamas? Esta acusação deitou achas para a fogueira. Para os palestinos, isso significava que Abbas não estava satisfeito com as atrocidades cometidas pelos israelenses e exigia mais. É difícil imaginar uma alegação mais prejudicial.

Como se isso não fosse suficiente, os meios de comunicação israelenses reportaram que Jerusalém tinha enviado um “ultimato” à Autoridade palestina: se o pedido para um debate não fosse retirado, Israel não iria autorizar a atribuição de frequências para uma segunda empresa de telefonia digital palestina, a “al-Wataniya”, cujos sócios, foi alegremente relatado, incluem os filhos de Abbas. Tal atribuição de frequências vale centenas de milhões de dólares. Mesmo em tal matéria, os palestinos estão totalmente dependentes das autoridades de ocupação israelenses.

Todo o caso ilumina de forma clara a situação impossível em que a Autoridade Palestina se encontra. Eles estão entre a espada e a parede – de fato, entre várias espadas e uma parede.

Uma espada é israelense. A Autoridade Palestina está completamente dependente dos senhores da ocupação. Como ilustra o caso da telefonia, nada pode mover-se na Cisjordânia sem a aprovação israelense.

Binyamin Netanyahu fala sobre a “paz econômica” como um substituto para a paz política. Benefícios econômicos em vez de independência nacional. Isto, por sinal, mostra quão longe ele está dos ensinamentos do seu ídolo, Ze’ev (Vladimir) Jabotinsky, que há 85 anos fez pouco dos líderes sionistas por cultivarem a ilusão de que o povo palestino poderia ser comprado. Nenhum povo, disse ele, se vende por vantagens econômicas.

O primeiro-ministro da Autoridade palestina, Salam Fayad, caiu nesta armadilha. Ele aponta para o progresso económico que tem sido feito, segundo ele, na Cisjordânia. Vários bloqueios de estrada foram removidos. Um centro comercial imponente foi aberto em Nablus. Dentro de dois anos, disse ele, os palestinos serão capazes de estabelecer um Estado palestino. Ele está a ignorar o fato de que o exército israelense, o soberano de fato nos territórios ocupados, pode pôr um fim a todos estes esforços a qualquer momento. Os bloqueios de estradas podem voltar a ser instalados e duplicados, as cidades colocadas sob toque de recolher, o centro comercial demolido. Na verdade, cada novo centro comercial na Cisjordânia aumenta a dependência da boa vontade das autoridades de ocupação.

Outra espada é americana. A Autoridade Palestina subsiste com dinheiro doado pelos EUA e seus coadjuvantes europeus. As forças de segurança da Autoridade Palestina estão a ser treinadas pelo general norte-americano Keith Dayton. Washington trata Mahmud Abbas como trata o presidente afegão, Hamid Karzai, e o primeiro-ministro iraquiano, Nuri Kamal al-Maliki. Ele é "o nosso filho da puta". Ele existe enquanto nós quisermos, desaparece se nós deixarmos.

Num confronto entre Washington e Jerusalém, Ramalá beneficiaria. Mas, como mostra o episódio Goldstone, os EUA e Israel estão, por enquanto, totalmente coordenados. Abbas não tem escolha senão dançar ao som da flauta de Israel.

A parede é palestina. De momento, o público palestino é passivo. Está cansado, desgastado, frustrado, em desespero. Mas o caso Goldstone mostra que, sob a superfície, fermenta um vulcão.

Porta-vozes do Hamas comparam Abbas com o marechal Pétain, o herói francês da Primeira Guerra Mundial, que era o ídolo do povo e do exército. Na Segunda Guerra Mundial, quando o exército alemão destruiu o exército francês numa Blitzkrieg que surpreendeu o mundo, o establishment político em Paris desintegrou-se. Na sua hora de miséria, o povo apelou ao idoso marechal, que se rendeu aos alemães a fim de salvar o que podia ser salvo. Ele era, sem dúvida, um patriota francês.

Hitler respeitava o marechal, e inicialmente tratou-o bem. Durante cerca de um ano, ele até considerou toma-lo como um aliado, de preferência a Mussolini. Uma grande parte da França manteve-se “não-ocupada”, como uma espécie de protetorado alemão, e aí foi instalado o regime de Vichy (do nome da sua capital). Mas cedo as coisas se deterioram e Pétain tornou-se um colaborador de corpo inteiro com os nazis, tomando mesmo parte na aniquilação dos judeus. “Vichy” tornou-se sinônimo de traição, e depois da guerra Pétain foi condenado à morte. Em consideração pelo seu passado glorioso, a sua sentença foi comutada para prisão perpétua.

Não penso que esta seja uma comparação justa. Ramalá não é Vichy. Khaled Mashaal em Damasco não é de Gaulle em Londres. Mas Vichy serve como um aviso, e a Autoridade Palestina está numa encosta escorregadia. Um regime sob ocupação está sempre em perigo de se tornar colaborador. Os ataques verbais do Hamas só aumentam a miséria de Abbas e seus aliados.

A ordem inicial de Abbas para retirar o pedido de um debate sobre o relatório Goldstone também obstruiu os esforços para superar a divisão entre as fações palestinas.

Os egípcios estão a espalhar notícias sobre um acordo palestino interno que está próximo e a revelar o seu conteúdo. É difícil acreditar que algo virá daí. É suposto que Hamas abandone o seu domínio solitário da Faixa de Gaza, e é difícil acreditar que eles vão fazer isso. É suposto que Abbas enfrente o Hamas em eleições livres – e isso também é difícil de imaginar. É ainda mais difícil acreditar que os americanos correriam o risco de permitir tais eleições. Eles já anunciaram que estão a fazer o possível para impedir a reconciliação.

Os meios de comunicação israelenses reportam alegremente que o ódio entre o Fatá e o Hamas é mais forte que o seu ódio contra os israelenses. Isso não é um fenômeno único. Quando nós lutavamos contra o regime britânico na palestina, David Ben-Gurion deu ordens para os combatentes do Irgun serem entregues à polícia britânica, e só a restrição quase inumana de Menachem Begin impediu uma guerra fratricida. Os combatentes da liberdade irlandeses mataram-se despreocupadamente uns aos outros quando os britânicos ofereceram um compromisso. Essas coisas aconteceram em muitos lugares.

Se os palestinos tiverem de escolher, não devem ser invejados. Por um lado, o Hamas é visto como um movimento incorrupto, fiel à luta contra a ocupação israelense. Mas as restrições religiosos fundamentalistas que estão agora a impor aos habitantes de Gaza, especialmente às mulheres, são detestáveis para muitos palestinos. Por outro lado, enquanto a Autoridade palestina é vista por muitos como corrupta e colaboracionista, também é vista como o único organismo que pode atrair o apoio americano para a causa palestina.

Hoje, o Hamas não oferece qualquer alternativa real na prática, uma vez que também ele está a observar um cessar-fogo com Israel. No entanto, a esperança de que Abbas poderia trazer a paz está a extinguir-se.

Como lida o nosso governo com esta situação?

Os ingênuos podem dizer: Israel está interessado na eliminação do extremista Hamas e no fortalecimento do moderado Abbas, que está a trabalhar para a paz com Israel; isso é auto-evidente.

Se assim é, porque é que o governo israelense está a impedir Abbas de alcançar qualquer conquista política, ainda que simbólica? Porque é que Ariel Sharon lhe chamou "galinha depenada"? Porque é que os meios de comunicação israelenses repetem todos os dias que Abbas é “demasiado fraco para fazer a paz”?

O que está a impedir Netanyahu de libertar mil prisioneiros palestinos como um gesto para com Abbas, enquanto ele está a negociar com o Hamas a libertação de mil prisioneiros em troca do soldado Gilad Shalit? Porque é que ele apresenta a Abbas condições cuja aceitação significaria o suicídio político? (Por exemplo: reconhecer Israel como “o estado da nação judaica”.) Porque é que a ampliação das colônias em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia se está a processar a um ritmo frenético, debaixo do nariz de Abbas?

A liderança política e militar de Israel não é composta de pessoas estúpidas. Longe disso. Quando eles fazem coisas cujas consequências podem ser claramente previstas, temos de assumir que são estes os resultados que eles pretendem, mesmo quando sustentam o oposto. Quando tantas das ações do governo reforçam o Hamas e enfraquecem Abbas, não será por isso que eles estão a fazê-lo?

E, de fato: Abbas é perigoso para a atual política israelense. Ele conta com o apoio do presidente Obama, que está a pressionar Israel para iniciar negociações com vista a “dois Estados para dois povos”, o que implica a retirada da Cisjordânia e o desmantelamento da maioria das colônias. Isso significa um fim a 120 anos de expansão sionista e uma mudança fundamental na própria essência de Israel em si.

O Hamas no poder sobre todo o povo palestino inflectiria esses “perigos”. Nenhuma pressão americana para um compromisso. Nenhuma necessidade de negociações. Nenhuma necessidade de “contenção” da atividade das colônias ou de um compromisso sobre Jerusalém. A ocupação poderia continuar sem ser perturbada.

Isso pode levar ao desastre no futuro. Mas quem se preocupa com o futuro?

Fonte: Informação Alternativa