Sem categoria

"Garapa": A fome crônica, uma verdade inconveniente, no cinema

Vencedor do Urso de Ouro com o sucesso Tropa de Elite (2007), o cineasta José Padilha voltou ao Festival de Berlim neste ano com seu novo filme: Garapa (2009). No longa, o diretor do documentário Ônibus 174 (2002) volta a apontar sua câmera para os problemas sociais brasileiros – o alvo desta vez é a fome crônica, vivida na carne por três famílias carentes do Ceará, cujo cotidiano de penúria é mostrado na tela com a crueza das imagens em preto-e-branco.

Padilha fez uma pausa no trabalho com o roteiro de Tropa de Elite 2 – que será filmado em janeiro de 2010 e lançado em agosto ou setembro que vem – para falar sobre o documentário Garapa. A entrevista é de Roger Lerina e publicada pelo jornal Zero Hora, 16-11-2009. Confira abaixo:

Por que você decidiu fazer um filme sobre a fome no Brasil?

Na verdade, eu fiz um filme sobre como a fome afeta as famílias em situação de insegurança alimentar grave. Tentei contar a história da fome pelo ponto de vista de famílias nessa situação. Eu poderia ter feito um filme semelhante na África, na Índia ou até mesmo nos EUA. Fiz no Brasil porque sou brasileiro e falo português. E também porque, infelizmente, a insegurança alimentar grave ainda é uma realidade em nosso país. Segundo o Ibase, mais de 11 milhões de brasileiros, dentre os que recebem o Bolsa Família, vivem nessa condição.

Como foi a escolha dos três núcleos familiares cujo cotidiano Garapa acompanha?

Por sugestão do Ibase, procurei três famílias em diferentes situações geográficas, uma em uma grande cidade, outra em uma pequena cidade e uma terceira no meio rural. Filmei no Ceará, onde essas condições eram fáceis de obter. Escolhi na hora, aleatoriamente, na medida em que ONGs locais me apresentavam as famílias com que trabalhavam.

Seus filmes, sejam documentários ou ficções, sempre abordam temas sociais como violência e exclusão de forma incisiva e mesmo chocante, sacudindo a consciência do espectador – especialmente do público de classe média, que em geral não se vê como parte atuante dessa teia social de causas e efeitos. Comente, por favor, esse posicionamento artístico-ideológico.

Não tenho nada contra o cinema de entretenimento, mas nunca tive vontade de filmar apenas para divertir. Por outro lado, sempre me senti atraído pelo cinema que se propõe a debater, ou apresentar, realidades e problemas sociais desconhecidos do espectador. Transportar o espectador para o universo onde pessoas reais, ou personagens representando tipos de pessoas reais, enfrentam problemas sociais sempre me interessou. Em suma, prefiro o cinema político. Mas trata-se de uma preferência pessoal, e não de um posicionamento ideológico. Não tenho uma posição ideológica que sustenta as minhas preferências.

Ao mesmo tempo que provocam a plateia à reflexão, seus filmes também denunciam a omissão ou a insuficiência da presença do Estado onde a sociedade mais carece dessa intervenção. Garapa também é um protesto contra a falta de eficiência da ação governamental no combate à fome?

No caso da fome, acho que o Primeiro Mundo falhou. O Brasil, na verdade, se tornou um exemplo a ser seguido, tendo criado um modelo de transferência de renda, o do Bolsa Família, que poderia, e ao meu ver deveria, ser universalizado via ONU, com a transferência de recursos dos países ricos para os países mais pobres com o objetivo precípuo de erradicar a insegurança alimentar grave. Não vejo outra posição eticamente sustentável tendo em vista a dimensão do problema. Acho, realmente, que o mundo tem se omitido diante da tragédia da fome.

Você adota procedimentos do cinema direto americano e do cinéma vérité, buscando o registro do dia a dia dessas famílias com o mínimo de interferência possível da equipe de filmagem. No entanto, há momentos em que você interage diretamente com os personagens, fazendo perguntas e comentários e até mesmo dando remédio para um deles. Como você lidou com essas duas condições, a de diretor e a de cidadão José Padilha, durante a filmagem de Garapa?

Eu tentei fazer cinema direto, mas, quando percebia que uma dimensão essencial do problema enfrentado pelas famílias iria ficar de fora do filme, interferia fazendo perguntas. Por exemplo: é muito difícil filmar a ausência de planejamento familiar e suas causas. Mas esse tópico não poderia ficar de fora. Por isso, fiz perguntas a esse respeito. Para mim, o diretor e o cidadão são a mesma pessoa, antes, durante e depois das filmagens.

Fonte: ZH