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O Brasil desescondido nos Pontos de Cultura

Secretário de Cidadania Cultural do MinC, Célio Turino está lançando o livro "Ponto de Cultura – o Brasil de Baixo para Cima". Um trabalho tecido ao longo de 4 anos, reunindo reflexões teóricas, relatos de viagem e impressões sobre o Brasil profundo que emerge dos mais de 2000 Pontos de Cultura do país. Nesta entrevista, ele adianta passagens e motivações do livro e defende a experiência dos Pontos de Cultura como exemplo de novo modelo possível de Estado – com efetivo protagonismo popular.

Diario do Nordeste – No livro você fala em um Brasil "de baixo pra cima", um País "desescondido", sobre o qual se lançou luz com os Pontos de Cultura. Como é esse Brasil?

Célio Turino – Eu abro o livro agradecendo ao Fernando Brant e ao Milton Nascimento, que autorizaram que eu contasse uma história junto a uma música deles, "Notícias do Brasil". Abro com a história de Araçuaí, uma cidade do Vale do Jequitinhonha, em que jovens músicos, depois de ganharem uns dois mil reais cada um com uma turnê que fizeram com o Milton, resolveram dar um presente pra cidade. Entraram como Ponto de Cultura, com o dinheiro deles como contrapartida, e a cidade ganhou um cinema. Os Pontos de Cultura mostram esse Brasil, que vem dessa capacidade que o povo tem, de ser generoso. É um modo muito mais simples de bem governar. São histórias como essa.

Diario do Nordeste – Você costuma fazer muitas referências a Pontos de Cultura do Ceará…

Célio Turino – Muitas dessas histórias vêm daí. O segundo capítulo, eu começo falando sobre o Ceará, o Cariri, que vem de tiriri, que significa silêncio. O vale do silêncio, a Chapada do Araripe, o Vale do Cariri. Aí vou contando uma viagem que fiz por ali, de várias, a magia do entendimento dali. E a partir desses relatos exponho essa experiência, que muitas pessoas ainda não entendem. Ficam imaginando que um Ponto de Cultura tem que ser um prédio, uma construção. E não é. Ponto de Cultura é um conceito, a realização de uma potência. Essa é a essência. Como na física quântica, o todo tá na parte, a parte tá no todo.

É possível contar a história de todos os pontos a partir de um único ponto. E aí eu escolhi um ponto do Ceará, o Pirambu (a Academia de Ciências e Artes – Acartes). A partir do que eu vi, da evolução que aconteceu no Pirambu, eu vou contando o que é um Ponto de Cultura, e depois misturando capítulos mais teóricos, conceituais, a outros mais poéticos até, que eu mergulho, me entrego mesmo. É um relato muito pessoal que tenho sobre essas histórias, essa trajetória.

Diario do Nordeste – Como esse relato pessoal conviveu com a sua posição formal nessa história, de gestor?

Célio Turino – Eu acho que tem três sujeitos aí, na construção narrativa. Tem a pessoa Célio, o intelectual, historiador Célio também – porque em alguns momentos coloco o conceito, a teoria – e o gestor Célio também. Tentei me fazer inteiro a partir dessa divisão.

Diario do Nordeste – Você aponta a Acartes como um exemplo do potencial dos Pontos de Cultura. Por quê?

Célio Turino – Primeiro eu tive uma proximidade ali, de ir cinco ou seis vezes lá. E pude ver a evolução. De uma casinha pequena à Fábrica de Sonhos, à cidade cenográfica que o (coordenador da Acartes, Gerardo) Damasceno falava em fazer, há quatro, cinco anos, e hoje é realidade. Se alguém ouve uma história assim, parece que não vai dar certo, parece sonho. E hoje é realidade, como os trabalhos de audiovisual que eles fazem, os equipamentos de cinema que fazem. Houve um momento em que eles fizeram um mirante, lá no Pirambu, e uso essa imagem como uma ideia de um lugar de onde você pode ver o horizonte. Poderia falar de outros pontos, como os meninos de Flores, lá de Russas, ou do Cariri. Mas ali no Pirambu eu pude ir diversas vezes. É como no prefácio do livro, do Emir Sader, em que ele fala dessa "Viagem ao des-silenciamento". O "des-silêncio". A história do Brasil tem sido o oposto: o silenciar da maioria.

Diario do Nordeste – Chama atenção a forma como as ações dos Pontos de Cultura se multiplicam, chegando a mais pessoas, gerando outras iniciativas. Era algo que, no início, você imaginava nessa dimensão?

Célio Turino – Um pouco eu imaginava sim. Conto isso no capítulo "Antes", sobre a minha história, o que eu fiz antes pra ter segurança nessa ideia. Não que eu idealizasse, mas eu tinha segurança que teria resposta. Hoje vai sair uma pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada), que indica que os Pontos de Cultura já beneficiam de forma direta aproximadamente 8 milhões de pessoas.

Fora o impacto indireto. Com relativamente pouco recurso. E recurso que chega na ponta, integral, sem perder um tostão. E lá ele realiza o objetivo previsto e se multiplica. Pode parecer até estranho ver um cara de governo dizer isso, mas é o oposto do que comumente se vê na administração pública. Não falo nem de corrupção, mas da forma como o dinheiro vai se esvaindo, na burocracia, numa gestão pública pesada. Quando você investe e confia – muito mais do que controla -, esse é um novo paradigma. Quando você confia, o povo é muito sábio.

Diario do Nordeste – Ao longo do projeto, não houve denúncias de desvio ou má utilização de recursos?

Célio Turino – Houve. E, como o repasse é condicionado, quando ocorre isso é fácil travar. Contaria de 10 ou 20. Mas isso, num universo de 2500 pontos, se percebe que a relação de benefício é muito maior. O que vejo é o oposto: na maioria dos lugares o dinheiro se multiplicou, se fez muito mais do que o previsto.

Diario do Nordeste – Caso haja uma grande mudança nas eleições de 2010 e o financiamento dos Pontos de Cultura seja interrompido subitamente, eles terão como sobreviver?

Célio Turino – Essa é uma preocupação nossa. Penso que a gente deveria ter uma lei. Aliás, já tá havendo um movimento na América Latina para uma lei do protagonismo e da autonomia cultural. Os Pontos de Cultura como uma campanha latino-americana. Já existe um projeto de lei no Parlamento do Mercosul, e uma reunião de ministros em São Paulo indicou recentemente os Pontos de Cultura como política pública em todos os países ibero-americanos. Isso tudo vai se enlaçando. Espero que no Brasil isso possa surgir como lei a partir da Teia 2010 (o grande encontro dos Pontos de Cultura, marcado para Fortaleza, de 22 a 28 de março), mas como uma proposição da própria sociedade. Não como iniciativa de algum político ou do governo, mas como uma lei de iniciativa popular, com coleta de assinaturas.

Diario do Nordeste – Você defende que o potencial dessa experiência vai além do setor cultural, que ela dá margem a um outro modelo de Estado. Como se daria essa transformação? Ela seria viável, no Brasil?

Célio Turino – Eu diria o seguinte: pra além da cultura, esse formato pode ser aplicado em outras áreas. Pra renovar o Estado. Não é o Estado brasileiro não, é o próprio conceito de Estado, com cinco mil anos de existência, que continua tendo por fundamento o controle. Com a experiência dos Pontos de Cultura, a gente está efetivando a ideia do Estado-rede, que o Manuel Castells falou disso. Como implementação, se não for a única experiência no mundo, é a única que eu conheço. Um estado educador, ampliado, menos sólido, mais gasoso. Sair dessa equação de estado mínimo ou máximo.

É o estado que amalgama com o povo. O estado do bem-estar comum. Aliás, eu reencontro aí o sentido do comunismo no século XXI. E olha só que coisa simples. Qual a origem da palavra? Bem comum. A partir da etimologia, vemos que o que é preciso é a recuperação desse bem comum. Um exemplo disso é que muita gente põe sua casa como Ponto de Cultura. Olha que coisa: num país em que há 500 anos se reclama de transformarem o público no privado, pessoas se dispõem a ceder sua casa para a coletividade.

Fazem da casa biblioteca, centro cultural, recebendo gente o dia inteiro, e ficam morando num quartinho. Acho isso de uma poesia, de uma doação enorme. É um exemplo, mas aí está a luz pra se encontrar um novo sentido da política, a partir da culturalização da política e da politização da cultura.

Diario do Nordeste – Houve reações, pressões contrárias ao programa?

Célio Turino – A maior eu diria que é um silêncio. Tirando a imprensa do Nordeste, a grande imprensa do centro-sul, principalmente Rio e São Paulo, praticamente ignora esse processo. Como eles não conseguem atacar, porque não houve nenhum grande problema, nós não ganhamos praticamente citação na Folha, no Estado. O Globo deu um pouquinho. A Veja até prefiro que a gente não apareça.

Foi praticamente a ignorância, o que mostra um divórcio profundo dessa elite que se achava formadora de opinião – e que não é – em relação ao País. Eles não entendem, porque sempre olharam pra fora. Não gostam do Brasil. Parece duro dizer isso assim, mas é isso mesmo. Outro indicador é a academia, que no início mal olhou o projeto, mas agora identificamos umas 30 teses nas mais diversas áreas, sobre os Pontos de Cultura.

Diario do Nordeste – E a Teia 2010, em Fortaleza? O que é possível adiantar?

Célio Turino – Primeiro ela tá cada vez mais empoderada pelas pessoas. A presença do governo foi diminuindo, embora o financiamento ainda seja fundamental. Segundo, vai ser a maior Teia de todas: quase 4 mil pessoas, de 2500 Pontos de Cultura. A ideia é que tenha uma interação grande com a cidade. Vai ser um retrato apurado do programa.

Fonte: Diario do Nordeste

Veja também um dos vídeos produzidos pelos Pontos de Cultura:
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