Xavantes fazem músicas em sua língua, a partir de sua tradição.
A guitarra de seis cordas inicia seus acordes acompanhada por um chocalho, um pandeiro e um teclado. Depois de uma introdução instrumental, em ritmo de difícil definição, o cantor se junta à melodia, e não é possível entender uma palavra sequer.
Publicado 29/04/2010 15:44
O som tanto lembra o de cânticos religiosos de católicos renovados e cristãos neopentecostais como é devedor de arranjos da música tradicional de Goiás e Mato Grosso, além de ter uma base de percussão completamente desconhecida. A gravação, seu primeiro CD, gira em um aparelho de som doméstico numa varanda improvisada.
O local é a terra indígena de Sangradouro, na aldeia mais próxima da estrada que leva de Primavera do Leste a Barra do Garças, no sul de Mato Grosso, e nela habitam xavantes. Markios, o guitarrista, tem 19 anos, e Goldemberg, o tecladista, 20. Estudam música juntos há um ano e meio em Primavera, mas se apresentam há dois anos em festas, inclusive em outras aldeias.
Tímidos, demoram a falar e a sorrir, como que buscando as melhores palavras. Em suas músicas, usam letras tanto antigas dos cantos da aldeia como novas, sobre paixão e natureza. Sua dupla tem um nome: A’uwê Uptabi, algo como “povo autêntico”.
Em 1995, Luciano Nomotse foi para uma escola de música, onde fez dupla com seu professor, um gaúcho. Os dois tocaram por cinco anos e, quando se preparavam para dar impulso à carreira, em Portugal, Luciano começou a fazer faculdade. “Eu me tornei professor e depois montei uma banda com mais três pessoas e resgatamos com os velhos os movimentos antigos”, conta.
Em seus trabalhos atuais, sozinho ou com a Banda-N, Luciano utiliza violão, teclado, instrumentos de percussão típicos e chocalho. Aos 41 anos, o músico entende seu trabalho como uma forma de preservar as tradições. “A nossa cultura antiga foi esquecida. Quando criei essas danças, foi a partir da música da minha etnia. Outros trabalham misturado, e esse tipo de trabalho não é fundamental.”
O recado é para os músicos mais novos, especialmente em outras aldeias, que usam elementos da música ocidental e de outras culturas indígenas, sobretudo as andinas. Além do resgate cultural, o professor tenta atrair os mais jovens, como forma de enfrentar um problema que contribui para parte da antipatia entre eles e os waradzu (nós): a bebida.
Mercado
Nos rituais do povo xavante o som tem papel fundamental. Eles ouvem muita música, tanto a própria quanto a de outras culturas. É comum encontrar músicos que trabalham uma vertente mais pop. O mercado, apesar de informal, é grande, e as mídias são bastante difundidas nas aldeias, onde boa parte conta com computadores nas escolas e aparelhos de som nas casas.
No município de Canarana (MT), na aldeia Belém, Márcio tenta fazer sua música desde 1989, com dificuldades. “De 2001 a 2007 fiz músicas com um parceiro. Parei porque é muito difícil”, conta. Em um festival da etnia, há cerca de quatro anos, foi classificado em primeiro lugar pelo trabalho de um CD com sete músicas sobre o futuro das crianças, a “nova geração”, e o meio ambiente.
Nos últimos três anos ele tem feito composições esporádicas e prepara uma nova investida na carreira, com o percussionista Leandro, seu afilhado. Canta apenas em sua língua natal e está aprendendo a tocar teclado, presente de um amigo antropólogo, que gravou a primeira “demo” da nova dupla.
Na aldeia São Marcos, próxima a Barra do Garças, Tsirobo registra o trabalho dos cantores xavantes. Gravou cinco CDs com diversos artistas. “Antes, só a memória nos fazia lembrar dos sonhos e dos cantos. Sonhei que deveria resgatar isso. Por isso eu faço os CDs, só com cantos nossos, de vários significados”, diz. O artista também canta e dança, mas somente na aldeia, “para os velhos”.
A produção de CDs e DVDs é distribuída de maneira informal, de mão em mão. A venda direta ajuda a custear as gravações, a compra das mídias e a manutenção dos instrumentos. Mas também há a venda em lojas.
A loja com o maior acervo deste “pop xavante” é gerida por José de Oliveira, o Juca. Ele tem um pequeno comércio no centro de Barra do Garças. Com 23 anos de atividades, a Brassom comercializa música indígena há dez. No começo da década, vendia o material em fitas cassete gravadas pelos indígenas. Em 2004, o xavante Fabiano levou algumas fitas para passar para CD. Logo os artistas migraram para a nova mídia.
Hoje é comum que os índios tragam CDs e DVDs prontos. Há também aqueles copiados e selados pela loja com autorização dos índios, que abrem mão da remuneração pela venda. “Vende bem, e todo começo de mês vêm muitos índios aqui. Parece uma aldeia”, conta Juca. Os títulos são variados, em origem e gênero. A aldeia São Marcos, de onde vem Fabiano, conta ainda com a produção de Tsirobo, Agnelo e da dupla Mario Covas e Humberto – “a Revelação Xavante”, como diz a capa de seu CD.
Por mês, a Brassom vende cerca de 200 mídias, entre CDs e, principalmente, DVDs, que custam R$ 10 e documentam a vida da etnia, em seus esportes típicos e festas. Eventos como a inauguração da igreja da aldeia São Pedro e um entrevero entre a polícia e os xavantes em Sangradouro, por causa da prisão injusta de um jovem, estão documentados – tudo na língua dos indígenas.
“Para os xavantes, a religião usa bastante essas situações, por meio da música cerimonial, que é basicamente sonhada”, diz o antropólogo Guilherme Falleiros, da USP. Esse papel e essa origem da música manifestam-se essencialmente nos cantos de iniciação – os xavantes têm um complexo sistema de apadrinhamento, por grupos etários.
Em suas cerimônias, cantos tradicionais se unem a cantos sonhados recentemente, envolvendo antepassados e animais caçados, base da música que estão tocando nas lojas e em seus “shows”. “Essa música gravada, quase um pop, tem elementos das músicas cerimoniais, especialmente nas letras, mas incorpora bastante músicas estrangeiras, nossa ou de outros povos.
O cerimonial absorve a novidade, mas de uma forma menos aberta”, completa Falleiros. O contrário também ocorre: a música cerimonial xavante foi gravada no álbum Roots, da banda Sepultura, com indígenas da região de Pimentel Barbosa (MT), mas a grande diferença se faz no impacto do uso dessas gravações, diz o antropólogo Massimo Canevacci. “A distinção entre quem representa e quem é representado deixa de existir: os xavantes representam a si próprios e às vezes também aos outros.
Fonte: Revista do Brasil