O grande trauma de 82

A Copa de 1982, disputada na Espanha, carrega em si uma imensidão de significados para nós, brasileiros. A campeã Itália não apresentou nenhuma grande novidade do ponto de vista tático ou desfilou grandes qualidades técnicas em campo, mas transformou o país do futebol. De repente, o futebol encantador do Brasil tornou-se uma reprodução de esquemas europeus que, em algumas ocasiões, deu certo. Em outras, só encheu a paciência dos torcedores.

Por Bruno Padron

Desde 70 o Brasil não conquistava a Copa do Mundo, e aquele escrete era apontado como um dos grandes favoritos ao título na Espanha. Afinal, um time que contava com um meio-campo formado por Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico não poderia ter outro tratamento.

A primeira fase da competição confirmou as expectativas. Após jogo duro contra a União Soviética, vencida pelo Brasil por 2×1, duas goleadas sobre a Escócia (4×1) e a Nova Zelândia (4×0).

Na etapa seguinte, devido às campanhas irregulares dos adversários, o grupo triangular do Brasil incluía Itália e Argentina. A Itália classificou-se com 3 empates na fase anterior e a Argentina havia perdido no jogo de estreia para a Bélgica.

O Brasil estreava com uma grande vitória sobre a Argentina. Com um espetáculo oferecido pela nossa seleção, cravamos 3×1 no time de Maradona, com direito à expulsão deste aos 40 minutos do 2º tempo. Com a vitória da Itália sobre nossos vizinhos continentais por 2×1, a vaga para as semifinais seria disputada no último jogo com a Squadra Azzurra, tendo o Brasil a vantagem do empate.

O jogo, que ficou conhecido como a Tragédia do Sarriá, foi um divisor de águas na história do futebol brasileiro. Os três gols de Paolo Rossi sobre uma seleção que não abdicou, mesmo com a vantagem que o regulamento lhe dava, do direito de praticar um futebol muito bem jogado, provocaram enorme reflexão sobre a falta de competitividade do nosso futebol.

Ali iniciou-se um intenso debate que envolveu dirigentes, treinadores e jornalistas sobre a necessidade de tornar nosso futebol novamente vencedor. Os jogadores, tratados como escravos da bola, pouco espaço tinham para opinar.

Enquanto para alguns o jogo do Sarriá foi uma fatalidade e a bela essência do futebol brasileiro não poderia ser alterada, pois vencemos três Copas exibindo um futebol de gala; para outros o futebol mundial já não era mais o mesmo, e necessitávamos nos adaptar às mudanças promovidas no mundo da bola.

Era a famosa pergunta: jogar bonito e perder ou jogar feio e ganhar?

Citavam-se como exemplos as derrotas da Hungria, em 54, de Portugal, em 66 e da Holanda, em 74. Estas três seleções encantaram o mundo, mas perderam. O Brasil somava-se ao grupo das grandes seleções que não venceram.

A questão pareceu resolver-se em 94, com o tetra do Brasil. Futebol burocrático e campeão. Inaugurava-se ali um novo paradigma para o nosso futebol.

Inúmeros volantes de qualidade discutível passaram a vestir a camisa da seleção brasileira. Enquadravam-se no novo perfil buscado pelos comandos técnicos brasileiros que se sucederam: homens fortes, com excelente condição física, capazes de perseguir adversários durante 90 minutos. Alguns deles até sabiam passar a bola para o lado, não muito mais do que isso.

Até nas peladas de hoje em dia exige-se marcação forte e, quem diria, até aplicação tática. Amador ou profissionalmente, proliferam-se carrinhos, empurrões, pancadas.

Partir para cima do adversário com dribles virou crime hediondo. Quem o faz é severamente punido com faltas violentas. Afinal de contas, no futebol de hoje impera a seriedade. Driblar é antiprofissional, ou até antiético!

Vez por outra o futebol brasileiro dá alguns gritos de liberdade. Com pedaladas, lençóis, carretilhas, canetas, alguns jogadores nos fazem lembrar como era bonito o nosso futebol. Mas basta alguém driblar mais do que deve, lá vem um zagueiro disciplinador impor a nova moral do futebol. A moral da força.

Se por acaso sobram dúvidas sobre a competitividade do futebol bem jogado, fica uma adaptação de uma canção de Chico Buarque: “Mirem-se no exemplo daqueles Meninos da Vila…”