De qual lado está o Brasil na questão das patentes?
A decisão de adotar mecanismos de interpretação da legislação patentária de forma restritiva e que possibilite proteger a saúde pública é política e não técnica
Gabriela Chaves e Renata Reis*
Publicado 07/06/2010 15:08
Em 2001 foi aprovada no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) a chamada Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS (sigla em inglês do Trade-related Aspects of Intellectual Property Rights, o acordo multilateral de propriedade intelectual) e Saúde Pública. A mensagem desta declaração era simples e sua força estava no fato de ser aprovada na esfera multilateral de comércio: "o Acordo TRIPS não impede e não deve impedir que os membros adotem medidas de proteção à saúde pública.
Neste sentido, reafirmamos o direito dos membros da OMC de fazerem uso, em toda a sua plenitude, da flexibilidade implícita nas disposições do Acordo TRIPS para tal fim (artigo 4)". Tal declaração não caiu do céu, ao invés foi resultado de batalhas sem medidas entre o interesse comercial e a necessidade de garantir acesso aos medicamentos recém-lançados contra a Aids, que representavam – e representam – a possibilidade de salvar milhões de pessoas.
Naquele mesmo ano, a Lei de Propriedade Industrial brasileira sofria uma emenda (prevista na Lei 10.196/2001) a qual incluía duas importantes flexibilidades incluídas no TRIPS e que possibilitava a proteção da saúde pública – a exceção Bolar, mecanismo que permite realizar testes para fins de obtenção do registro de comercialização em agências reguladoras, antes da expiração da patente, e o instituto da anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no processo de análise dos pedidos de patentes farmacêuticas.
Estas duas flexibilidades nunca foram tão cruciais quanto agora no cenário pós-2005. Fontes alternativas de medicamentos genéricos a preços acessíveis no mercado internacional começarão a se extinguir em função de países-chave, como a Índia, passarem a reconhecer patentes para o setor farmacêutico. A exceção Bolar porque possibilita a realização de testes e obtenção do registro antes da expiração da patente; a anuência prévia por permitir uma interpretação restritiva dos três requisitos de patenteabilidade e evitar a concessão de patentes indevidas que podem gerar situações de monopólio injustificáveis e que afetem as políticas de acesso a medicamentos.
Em pesquisa realizada na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fiocruz, ficou demonstrado que, em um universo de 770 pareceres emitidos pela Anvisa, entre junho de 2001 e dezembro de 2007, o percentual de não concessão de patentes foi de 3,4%. No entanto, a avaliação criteriosa da Anvisa permitiu ver que muitos pedidos de patentes não eram suficientemente claros em seu relatório descritivo, em outras palavras, os pedidos não "revelavam" a invenção de forma compreensível ou suficiente. Considerando que o sistema de patentes "se justifica" em função da contrapartida do monopólio em troca da disponibilização da informação sobre a invenção, chama a atenção que a insuficiência descritiva seja uma prática crônica dos depositantes de pedidos de patentes do setor farmacêutico.
Apesar do papel relevante e estratégico da Anvisa na realização dessas análises, o que se vem testemunhando nos últimos anos é uma ofensiva multidimensional para acabar com a anuência prévia. Primeiro, por meio de ações judiciais, onde os principais interessados em ver o fim da anuência – as empresas farmacêuticas transnacionais – têm atuado de forma a questioná-la. Um exemplo é a ação movida pela empresa suíça Roche em face da Anvisa pelo indeferimento da patente do medicamento Valganciclovir. A empresa não só contesta a decisão da Anvisa contrária à concessão da patente, como também contesta o instituto da anuência prévia em si.
A segunda ofensiva se dá na esfera legislativa, como é o caso do Projeto de Lei 3.709/2008, proposto pelo deputado Rafael Guerra (PSDB-MG), que pretende limitar a anuência de tal maneira que equivaleria ao longo do tempo em sua extinção.
O terceiro exemplo da ofensiva é o recente parecer emitido pela Procuradoria Geral Federal (PGF) em 16 de outubro do ano passado. Através dele, a Procuradoria Geral da Fazenda, em nossa avaliação de forma equivocada, sugere a criação de um quarto requisito de patenteabilidade que seria a análise, nos pedidos de patentes, dos possíveis efeitos nocivos à saúde humana. Além da Anvisa já avaliar efeitos nocivos de medicamentos por ocasião da avaliação dos pedidos de registro sanitário, é tecnicamente impossível realizar essa análise através de um pedido de patente. Tais ponderações, óbvias para um técnico no assunto, põem por terra a argumentação da Procuradora Geral da Fazenda e ainda colocam o Brasil em risco de ser contestado em painel na OMC.
Outro ponto que deve ser considerado na situação temerária da anuência prévia é que o parecer da Procuradoria Geral da Fazenda vai contra a corrente da posição pró-saúde pública defendida e liderada pela delegação brasileira em foros internacionais, tais como na Agenda do Desenvolvimento da Organização Mundial de Propriedade Intelectual e na recente Estratégia Global e Plano de Ação Sobre Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual (WHA 61.21) na Organização Mundial da Saúde.
É cansativo para aqueles que atuam no campo da saúde pública e do acesso a medicamentos seguir buscando justificativas jurídicas e técnicas para defender a vida. Esta disputa disfarçada de "técnica" é eminentemente política. A decisão de adotar mecanismos de interpretação da legislação patentária de forma restritiva e que possibilite proteger a saúde pública é política e não técnica. Diante de tantas arenas de disputa no nível nacional e governamental com o objetivo de acabar com a anuência prévia da Anvisa, perguntamos: de que lado o Estado brasileiro está? Do lado dos interesses privados e de suas patentes imerecidas para deterem infinitamente o monopólio de produtos essenciais? Ou do lado das pessoas, usuárias de medicamentos no Sistema Único de Saúde (SUS)?
*Gabriela Chaves é farmacêutica, representante da Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais, Médicos Sem Fronteiras. Renata Reis é advogada, Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS. Este artigo foi publicado originalmente no jornal “Valor” (7-6-2010)