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Marco na história do cinema, Psicose faz 50 anos

Oficialmente, o cinema tem 115 anos (a "primeira sessão" promovida pelos Irmãos Lumière ocorreu em 28 de dezembro de 1895). Com isso, podemos dizer que os filmes realizados entre 50 e 60 anos atrás dividem a história da Sétima Arte em duas partes aproximadamente iguais. São as realizações que estrearam entre 1950 e 1960.

Por Marcello Castilho Avellar, em Diario de Pernambuco

Uma delas, e não das menos importantes, acaba de se tornar cinquentona: Psicose, dirigido por Alfred Hitchcock, foi lançado em 16 de junho de 1960. Seria possível dividir o cinema em a.P e d.P (antes de Psicose e depois de Psicose)?

A operação parece fácil com obras que os historiadores apontam como fundamentais para a gênese da linguagem cinematográfica, como Nascimento de uma nação, Encouraçado Potemkin, Paisá, Acossado. Mas possivelmente pode ser realizada, também, com o filme mais célebre do mestre do suspense. Para realizá-la, precisamos investigar em que o cinema de hoje é diferente da produção a.P., e em que isso pode ser atribuído a Psicose.

A primeira coisa que percebemos é que houve uma aceleração no ritmo da montagem cinematográfica. Boa parte das sequências mais importantes de muitos filmes atuais são fundadas em planos curtos unidos por cortes súbitos. Essa paixão do espectador atual pela velocidade se deve ao que ele aprendeu graças a ferramentas e processos variados.

O controle remoto e o mouse tornaram real a possibilidade de alguém saltar com agilidade de um estímulo audiovisual para outro, a internet, a televisão e o vídeo (principalmente o clipe) propuseram formas narrativas baseadas na overdose de imagens. Mas podemos nos perguntar como o espectador começou a gostar disso (ou como voltou a gostar disso).

A resposta com certeza está na célebre sequência do chuveiro em Psicose, a mais famosa do filme, que propôs um padrão na relação entre quantidade de estímulos visuais e tempo que não se via no cinema desde os filmes silenciosos.

Outro traço característico do cinema a.P. era sua obsessão por gêneros. Para terem certeza de encontrar um público bem definido, filmes tinham que se afirmar dentro de certas categorias, regidas por características, técnicas, atmosferas, linguagens, espaços materiais ou conceituais – uma comédia era uma comédia, um musical era um musical, um western era um western.

Mesmo as produções mais rebeldes acabavam respeitando essa lógica (como o Acossado, de Jean-Luc Godard, um dos filmes fundadores da Nouvelle Vague e ostensivamente uma narrativa policial). Basta olhar para o cinema ou a televisão nos dias de hoje para verificar o tanto que as fronteiras entre os gêneros se esgarçaram (e, em alguns casos, foram completamente rompidas).

Psicose é o ponto de inflexão. Possivelmente vai satisfazer os requisitos determinados em qualquer categorização que tente definir gêneros como terror, filme de suspense ou narrativa policial, mas recusa-se a se limitar a qualquer delas. Pensando radicalmente, podemos pensá-lo até mesmo como uma comédia de humor negro – o que o tornaria antepassado distante das comédias de terror contemporâneas, ou dos filmes de terror pretensamente sérios que, por incompetência de seus criadores, produzem o riso).

Isto é Psicose

Psicose continua sendo um dos filmes mais rentáveis da história do cinema. Faturou, na temporada de lançamento, cerca de US$ 40 milhões, 50 vezes o que custou. Aos preços de ingressos atuais, a renda seria de quase US$ 300 milhões (o equivalente a um sucesso atual como Ilha do medo)

A sequência do chuveiro, a mais célebre do filme, dura apenas 45 segundos. Mesmo assim, Hitchcock gastou uma semana para filmá-la, tentando obter o máximo de precisão nos planos que foram rodados com a câmera em 70 ângulos diferentes. Ao todo, são 78 cortes para aquela curta duração.

À época de Psicose, Hitchcock estava mudando de estúdio, da Paramount para a Universal. Contam as lendas de Hollywood que Walt Disney se recusou a dar abrigo a seus projetos por causa do filme: afinal, Psicose é o exato oposto de tudo o que alguém pode associar à produção Disney.

Fonte de inspiração

Impossível pensar a contemporaneidade, também, sem a avalanche de citações e referências que compõem a arte atual. Claro que elas existem há séculos – mas enquanto antes constituíam estratégia localizada dos artistas, nos tempos atuais se tornaram os tijolos fundamentais da criação.

Podemos situar a transição desses dois estados na virada dos anos 1950 para 1960 (a Nouvelle Vague, da mesma época, é ótimo exemplo disso). E Psicose, claro, assume posição privilegiada nele em relação ao cinema. Deu à arte dos filmes a obra-padrão a ser imitada, parodiada, copiada.

É possível que nenhum outro filme do cinema moderno tenha inspirado tantos roteiristas e diretores, numa possibilidade infinita de referências – e não estamos falando aqui das péssimas continuações que o público precisou engolir anos depois da morte de Hitchcock.

Vamos encontrar suas estruturas tanto em filmes sérios (Vestida para matar ou Carrie, a estranha, de Brian de Palma) quanto em paródias ostensivas (Alta ansiedade, de Mel Brooks). Sua linguagem é diluída na maioria das citações (as comédias de terror, por exemplo), mas pode servir de ponto de partida para outras obras igualmente radicais e transgressoras (Veludo azul, de David Lynch). O próprio Hitchcock parece ter apreciado tanto o que fez que nos remete a Psicose em cenas de obras como Cortina rasgada.

Possivelmente, a iniciativa mais ousada neste sentido foi o Psicose que Gus Van Sant. Estreou em 1998. Essencialmente, não se trata de uma adaptação do filme de Hitchcock, mas de um decalque, sua refilmagem plano a plano. É obra conceitual: interessa-nos mais por ter sido feita, por demonstrar ou negar teses sobre cinema, que por si mesma. A escolha de Hitchcock e, especificamente, de Psicose para a experiência foi exemplar.

Alfred Hitchcock acreditava na possibilidade do filme pronto antes mesmo de ser filmado, ou seja, uma obra planejada a tal ponto que cada imagem ou sequência deveria alcançar seu resultado se, e apenas se, fosse realizado integralmente aquele planejamento. Psicose é, possivelmente, sua obra que levou esta ideia a um extremo mais radical.

Ironicamente, as grandes falhas do Psicose de Van Sant são exatamente os momentos em que o autor dentro dele não resiste e incorpora ao filme elementos estranhos ao roteiro representado pelo original de Hitchcock – a cor que dilui a força das cenas violentas e reduz o clima, as interpolações que parecem ralentar o ritmo e inventar psicologismos. Van Sant não fez um filme mais fraco porque imitou Hitchcock, enfraqueceu seu filme exatamente por não ser capaz de imitá-lo totalmente.