Onde e como se faz uma cena cultural

Qual é o point da cidade hoje em dia? Para alguns o barzinho do bairro, para outros qualquer canto da cidade, talvez aquele lugar que está na boca do povo, como era por uma época o Gosto Gostoso, no Grageru, ou o Tequila Café, na Atalaia – capazes de juntar gente de todas as idades. Além de reunir pessoas, esses lugares incentivam a produção, favorecem a troca de ideias e concretamente funcionam como celeiro da cultura.

O Centro de Criatividade, fundado em 1985, no bairro Getúlio Vargas, foi notoriamente um lugar assim. Durante toda a década de 80 reuniu cantores, atores e todo tipo de artista. Historicamente utilizado para dar lugar à arte e à educação, foi palco de vários festivais de música e no período junino ainda hoje é ponto de encontro oficial no Arraiá do Arranca Unha.

Quase sempre é nesses lugares – points noturnos e complexos culturais – que surgem as tendências da cidade. Mas alto lá, esses eventos que dão cara e aura a esses espaços não são fruto de criação espontânea. Tem sempre um agitador por trás disso, alguém que gosta pra burro de música ou teatro ou artes plásticas ou cinema ou literatura ou aquele mais voltado para a educação. Tanto que resolveu promover seu próprio evento ou espaço. É o produtor cultural, alguém agoniado por natureza.

Quem movimenta

Liga para os artistas, capta recursos, verifica impostos, marca horários, contrata técnicos e, claro, busca espaços. Aliás, a dobradinha produtor-espaço cultural é tão essencial quanto a piadinha ‘todo chinelo torto tem um chinelo velho'. Se não tiver lugar bacana e produtor sangue no olho, é bem possível que algumas bandas deixem de passar por sua cidade.

Em Aracaju poucas pessoas dedicam suas vidas a essa profissão. Com 29 anos, Elma Santos é uma das produtoras mais reconhecidas da cena independente, com uma capacidade de produção feroz. Começou na área do audiovisual na Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde participava do Cine Academicomsoc e depois do projeto da Petrobras, o Cinema BR Movimento. Como o trabalho foi ganhando forma, em 2002, foi chamada por Rosângela Rocha para produzir o Festival Iberamericano de Cinema de Sergipe (Curta-SE) – coisa que faz até hoje.

No meio do caminho, entre amizade e profissão, ela também produziu a banda Naurêa e diversos eventos pela cidade. "Na verdade sempre gostei de fazer isso, embora não tivesse a dimensão, tinha interesse de trabalhar nessa área, já era predisposta", revela. Formada em radialismo e cursando jornalismo, ela já assumiu que essa predisposição e coragem são os elementos fundamentais do que hoje é sua profissão.

Produtor cultural

Segundo Elma, a maioria dos que entram na área começam assim por acaso, tentando produzir as coisas que não acontecem por aqui. "De um tempo para cá é que surgiu a profissionalização. Muita gente não tem acesso a um conhecimento mais profissional da coisa. Agora os cursos estão acontecendo com mais constância", afirma. Um dos indícios dessa profissionalização é a assinatura de contratos. Trabalhando com empresas – o que também é uma mudança -, esses trâmites legais são necessários.

"O entretenimento não é só diversão, é uma cadeia de trabalho também. As pessoas estão voltando os olhos para isso, mas não é uma realidade daqui exclusivamente", analisa Elma, pelo que tem visto viajando e observando a cena em outros estados brasileiros. Ela acredita que muita coisa está acontecendo por conta da quantidade de editais do governo federal na área da cultura.

Na cena local, a movimentação de produtores independentes fez acontecer em Aracaju os extintos festivais Rock-SE – hoje vivo na memória dos roqueiros trintões -, e o Punka, que chegou a ser considerado um dos melhores do Brasil. Muito também por força de produtores culturais aconteceu o projeto dos sonhos da Maria Scombona, o Mundo Rock Interior. Durante meses o pessoal rodou o interior do estado dando oficinas de instrumentos musicais – no final fazia um show. Do epicentro da banda, Elma coordenava as ações realizadas em cada município junto a produtores locais. Um projeto que fez história e existe até hoje.

‘Independência ou morte'

O produtor e idealizador do Coverama, Alexandre Hardmam, é, junto a Elma, um dos poucos que vivem de produção cultural na cidade. "Já pensei em ir a São Paulo, Rio de Janeiro ou Salvador para trabalhar. Estou querendo fazer eventos em Maceió também, mas ainda não consegui abertura lá. Não tenho a mínima intenção de sair", diz Alexandre.

Para ele, que também produz a festa Derrota, um dos maiores problemas hoje é achar um local para que as bandas possam tocar sem perturbar a cabeça da vizinhança. "Antigamente havia vários lugares para fazer show – os clubes ATPN, BNB, da Caixa Econômica e vários outros. Hoje não tem opção", critica Alexandre.

Espaços como o Centro de Criatividade, o Gonzagão e a maioria dos clubes não comporta mais shows porque passaram a ter residências muito próximas. Alexandre afirma que muita banda entra em contato com ele para tocar em Aracaju aproveitando suas turnês pelo nordeste, mas nem todas acham um bom lugar para tocar. Um verdadeiro problema para produtor resolver.

Alexandre afirma que existem algumas soluções, mas nenhum delas tão fácil de executar. Fazer o isolamento acústico dos lugares, por exemplo, gera um custo além do que o mercado pode comportar. "Orcei para fazer o isolamento do clube Banco do Nordeste uma época, chegava a R$ 300 mil", informa. Outra opção, de acordo com ele, seria liberar por meio de edital uns galpões no Bairro Industrial que foram de indústria.

Dentro e fora

Quem aposta na cena tentando mudar esse quadro é o espaço Cultiva, sob a responsabilidade de Caio Berbert e Leo Levi. Eles revitalizaram a antiga Casa do Rock na rodovia José Sarney e acreditam na formação de público trabalhando principalmente com bandas sergipanas, dentro do projeto ‘Eu cultivo a música sergipana'. Também está nos planos deles trazer bandas renomadas para atrair público e fazer a casa se tornar referência – e claro, enfrentar algumas adversidades. Uma delas, difícil de ser contornada, é a distância. Chegar à região da Aruana de ônibus e ainda voltar depois do show fica difícil.

Caio e Leo estão numa condição diferente da maioria dos produtores. Depois da decisão de colocar a própria casa de shows, eles têm gastos fixos e precisam fazer a coisa funcionar de qualquer maneira. "O produtor é um agitador social e um empresário ao mesmo tempo. Somos fomentadores e trabalhamos em prol de uma cultura local. A gente faz isso para viver, mas quero ver a música crescer. Aqui temos as melhores bandas do Brasil", afirma Caio, que também é designer gráfico.

Público e privado

De acordo com ele, o mercado local está passando por um processo natural e aos poucos vai se desenhando um movimento que aos poucos se consolidará. Lugares como a Sociedade Semear, no bairro São José; o Centro de Cultural e Artes (Cultart) da UFS, na Rua da Frente; e a Casa Rua da Cultura há alguns anos sustentam a cena com capacitação de jovens e dando espaço a shows, exposições e produção. De acordo com o diretor teatral Lindemberg Monteiro, responsável pela Casa Rua da Cultura, o espaço consegue realmente ser um canalizador de ideias e tendências. "É um lugar para as discussões que estão se estabelecendo", afirma.

Como espaço público, mantido com dinheiro do Governo Federal por meio de editais e apoios locais, a Casa está sempre aberta e acessível para qualquer tipo de projeto. Lá ensaiam grupos de teatro, enquanto outros ficam em temporada; crianças aprendem circo ou capoeira; gente faz leitura dramática, pesquisa um livro didático ou senta na mesa da biblioteca para jogar uma partida de xadrez.

Ainda assim pouca gente se dá conta que ali é um lugar para deixar fluir as coisas. "As pessoas não têm a noção de que podem se apropriar desse espaço, mas essa é uma questão da sociedade mesmo que foi privada de qualquer tipo de apropriação por algum tempo. Essa dificuldade existe no geral, e aí é normal que as pessoas não compreendam que elas podem entrar e ler os livros", acredita Lindemberg.

Essa abertura prova que eles continuam seguindo a lógica da Rua da Cultura, que nasceu em 2002, ocupando o espaço em frente ao Teatro Atheneu. Hoje continuam com o projeto na área dos Mercados Centrais, ocupando um espaço antes evitado. E como uma coisa leva a outra, deu vazão para a revitalização do Beco dos Cocos, movimento que acontece atualmente toda sexta-feira à noite.