Sem categoria

Marco Albertim: No claustro…

Fechou aliviado o sacrário e cobriu-o com a cortina. Ajoelhou-se com a cabeça baixa, os olhos gratos pela graça do pão e do vinho. No kyrie, pediu perdão mais para si que para a humanidade, jurando imolar-se ouvindo o cantochão numa fogueira de incenso. Gritou aleluia com suores, sem olhar o pano na cintura do Cristo. Trêmulo, deu as costas para o altar e não olhou os fiéis de frente.

O coroinha livrou-o da casula. Frei Cosmo sumiu na cortina de acesso ao convento.

O ajudante nada conjeturou.

Na cela, sem a batina, molhou o rosto no lavado. Ajoelhou-se sob a imagem do Cristo no santuário. No rosto da imagem, distinguiu os olhos de Che Guevara indiferentes à dor. Mirou-a na cintura, descobrindo o falo cobiçado por mulheres e homens como ele.

Na bíblia, releu o episódio de amor de Davi por Jônatas. Dormiu duas horas para incorporar fantasias. Ao acordar, lembrou o quanto penosa fora a celebração.

A frente do convento fora iluminada. Os mais velhos, sentados sob a arcada, o esperavam. Ao lado, sob a coberta improvisada de palha, velhas papa-hóstias comerciavam quitutes da cozinha carmelita. Era a noite do Carmelo.

Frei Cosmo sentou-se na cadeira reservada a si. Demorou meia hora espreitada no relógio do pulso. Trajando feito um leigo, com alpercatas de couro escasso, misturou-se às gentes na praça. Desceu a rua na direção do cais.

Sentou-se num dos bancos de cimento, olhando o rio. Ouviu o ruído da coreografia das putas. A voz soprou em seu ouvido:

– Não há mais tempo. A reunião terá que ser hoje. A que horas podemos entrar?

– Quando as mulheres do pavilhão forem para casa. Eu abro meia janela de meu quarto. A luz estará acesa; é o sinal para vocês entrarem. Não pela frente. Terão que ir pelo portão dos fundos, na rua de trás. O zelador estará de folga. Mesmo assim é bom que saiam antes do amanhecer.

A praça se esvaziara. Duas barracas com apostas em dinheiro na roleta entretinham cristãos profanos.

Frei Cosmo abriu o portão. Cinco homens entraram. Encolheu-se, ele, para não olhar os rostos e não ser olhado. Caminharam, ele à frente, para a vacaria. Os homens se acomodaram sob um alpendre, em bancos de madeira.

Frei Cosmo, o prior e um velho carmelita, míope, ocupavam cada um uma das celas do convento.

A vacaria podia ser avistada de uma das janelas dos fundos do pavimento de cima. O lume mortiço do candeeiro não ultrapassava o perímetro do alpendre. Os homens falaram sem se tratar pelos nomes. Um deles tirou da cintura um revólver. Frei Cosmo vira e não ficara para a reunião.

Na cela, balbuciou uma reza. Outra vez viu o rosto inerte de Guevara.

De manhã, encontrou duas guimbas de cigarro na vacaria e cuidou que sumissem sob a terra molhada.

No refeitório, cada religioso murmurou sua oração antes de comer. Frei Cosmo comeu pouco. O mais velho emporcou o queixo com farelos de milho e pingos de leite. O prior, voraz nas refeições, intimou Frei Cosmo.

– Amanhã venha falar comigo. Pela manhã – falou sem despregar o olho do prato.

A julgar pelo desleixo, o prior não sabia preparar um logro. Podia ser um reparo de rotina, porquanto fora a primeira celebração conduzida por frei Cosmo. O latim fora dito com inflexão indecisa. Frei Cosmo se pôs em guarda.

O prior dava-se com todos os chefes de Goyaninha; prefeito, juiz, promotor e delegado. No último domingo de cada mês, almoçava na casa de um ou de outro. As matronas o proviam de tortas e pudins.

– Tem dúvidas quando a seu ofício, Cosmo?

– Não.

– Estava trêmulo na eucaristia. Não tem fé bastante nos sacramentos?

– Acredito nos sacramentos sem mistérios. São revelações.

– Fala como um gnóstico…

– Acredito na revelação. Por isso Deus está no coração dos homens.

– Mais um idealista na Igreja! A fé não comporta especulação, Cosmo. Deus é verdade absoluta.

– Deus tem presença relativa onde há a dúvida. Quanto mais se revela, mais é verdadeiro. Por isso sou sacerdote para os outros. O que não quer dizer que eu mesmo não tenha que descobri-lo em meu coração. Sou seu agente e sofro sua ação.

Os sinos repicaram o meio-dia.

– Depois voltamos a conversar.

Zelar pela prelazia era ter o controle de raciocínios. O prior era frouxo quanto a si, e impunha a doutrina a frei Cosmo, ainda com modos de noviço. Queria dormir sem o incômodo de que suspeitassem que o único proveito que tirava do retiro era o remanso do convento. Tinha medo de interromper a sesta diária de duas horas.

Uma palavra não se ouviu no almoço.

Frei Cosmo, com magreza de família, não roncava à noite nem se deitava depois do almoço. Tinha pesadelos por causa da sexualidade contida. Agarrara-se à bíblia e à crença de moços revolucionários. Rezando, queria absorver a força do homem que resistira às tentações.

Com o fim das comemorações, a praça no largo da igreja voltou à escuridão fechada. A janela que se mantinha aberta na frente do convento ficava no pavimento de cima; ali os frades se reuniam. A vinda de seminaristas minguara. Frei Cosmo não tinha companhia da mesma geração. Frei Constâncio, velho, vivia debulhando ave-marias no rosário.

O convento era uma habitação sem vida. Morcegos piando, uma coruja aqui e ali em sua caça.
No cais, frei Cosmo se reencontrou com Solano.

– Estamos sem local para o arquivo. O convento é lugar seguro, a sua cela. Ninguém se atreverá a examinar seus aposentos.

– Nem tanto. Sei que o prior seria capaz de bisbilhotar na minha ausência.

– Por que não o tem como aliado? Não é nosso inimigo de classe.

– Não é confiável. Desconfia de todos os novatos. Acha que são uma ameaça ao seu priorado. Sem o latifúndio seria a ruína da Igreja, ele diz.

– E você vai se manter por muito tempo sob a autoridade dele?

– Meu compromisso não é com o prior, e sim com o evangelho.

– Mas lhe deve obediência…

– O povo também deve obediência à autoridade. Quando essa autoridade cair, sobrevirá nova hierarquia. Assim será na Igreja. – Olharam-se cúmplices. Não tinham certeza de que não estavam sendo vistos.

– Não estamos num debate – disse frei Cosmo. – Combinado. Esteja no portão na hora de costume. Mas não esqueça que os papéis vão ficar sob guarda provisória.

O pacote foi posto sob a cama, junto a um baú onde guardava a primeira bíblia que ganhara de presente; fotos com familiares e outras com noviços, na época do seminário. Embaixo de tudo, sob o forro felpudo, a foto de Guevara com o rosto crivado de balas. Queria-a num caixilho, como um ícone, e mirava-a com fervor telúrico.

Frei Constâncio, na missa do domingo, segurava a sacola de donativos; o terço enrolado na mesma mão, apertando as contas com o indicador e o polegar na reza digestiva. Não tropeçava porque abriam caminho a sua passagem. Seu rosto era de cera, feito o dos santos barrocos.

Recolheu a sacola certo de que sabia o nome de cada um dos doadores. Ao despejar o dinheiro sobre a cômoda, dispor cédula sobre cédula, experimentou uma estranheza tátil. Segurou uma cédula dobrada; dentro, outro papel com um manuscrito desajeitado. Aproximou-o dos óculos. Depois abaixou as mãos, como se tivesse desfalecido.

Frei Cosmo, sem a casula, recebeu o papel e leu:

Baitolo de batina. Sabemos quem é você

Na cela, mirou o bilhete como se o esforço fosse capaz de distinguir o autor. Baitolo, baitola, modo chulo para designar o coito anal. No seminário, Cosmo se distinguira pela prospecção religiosa, sem rapapés de baitola. Não desceu para o jantar.

O prior, vendo a xícara de frei Cosmo emborcada, ordenou ao criado que batesse na porta de sua cela.

– Não estou com fome – respondeu sem abrir a porta.

O criado cumprira a ordem sem se dar conta da astúcia do prior. Frei Constâncio empapou a batina com a nata do leite, deixou a xícara cair. Os anais do convento não registraram; só a espionagem indolente do prior, e o remorso insurgente de frei Cosmo.

Na manhã seguinte, o prior voltou a intimar.

– Cosmo, mais tarde voltamos a conversar.

Frei Constâncio, no esforço da mouquice, estacou-se; morreu presa fácil de embolia. Ao enterro compareceram o prior, frei Cosmo, o criado e familiares.

No ano seguinte, os ossos do morto foram trazidos do cemitério, postos numa gaveta da parede divisória entre a sacristia e o pátio. Frei Cosmo olhou a campa de mármore, e vagou no pátio de hortelãs e romãs. Frei Constâncio morrera com 83 anos. Ele tinha 28 e queria pôr fim à vida. As romãs perfumavam. Recolheu um fruto, fingindo crer nos desígnios de sorte da romãzeira.

O bilhete fora conservado sob os papéis entregues por Solano. O baú não fora aberto nem para olhar o retrato do ídolo. A conversa com o prior não houve. O gordo prior a sufocara sob o agouro da morte.

A morte de frei Constâncio sustara o intento de quem queria infamar frei Cosmo, inda que sua homossexualidade fosse contida nos rogos ao santuário.

Ele se entretinha estudando, aguando gerânios. O contato com a flor remeteu-o à estufa do seminário. Ali, vira dois noviços nus, beijando-se sob o chuveiro. O susto cedera ao prazer do voyeurismo. Vigiou os amantes e desvairou-se na luxúria. Os moços foram exorcizados para seminários distantes. Cosmo recolheu-se à autoflagelação, com medo de consumar a demanda do corpo.

Olhando pela primeira vez Guevara nu, o corpo furado de balas, fixara-se na candura do rosto. O encantamento tornou-o afim dos moços conjurados.

Nos repiques de enterro, os sinos lembravam frei Constâncio com a mente convulsa com o que lera no bilhete. O velho nunca ouvira falar de baitolas, sobressaltara-se com a mesquinhez da frase. Morreu embotado, talvez pedindo proteção para Cosmo.

Solano reapareceu na quaresma. Às sete horas, enfiou-se na fila do confessionário para soprar no ouvido do confessor:

– Não tenho dívidas com santos, vigário… Só créditos para o povo. Redima minha alma e me deseje longa vida para alcançar a revolução dos homens.

– Sacrílego e fanfarrão. Está inteiro? E os outros?

– Simão está preso. Está sofrendo o diabo nos interrogatórios. Mas não abriu nada. O advogado diz que só vai conseguir falar com ele, quando os hematomas sumirem do corpo.

– Estou sendo observado? Sabe dizer?

– Não temos certeza. Desconfiamos que sim. Mas não tocarão em você; seria agressivo para todos.

– A papelada! Já deviam ter levado.

– É sobre isso que quero falar. Quando posso pegar?

– Amanhã. De madrugada, na vacaria. Virá sozinho?

– Não. Vou com alguém para ficar com você.

– !?…

– Um camponês. Foi denunciado no engenho onde trabalhava. A polícia e os capangas do proprietário estão atrás dele. Se o pegarem é morte certa. Não podemos levá-lo para outro lugar agora. Daqui a uma semana teremos condições de levá-lo para outro estado. Enquanto isso, acomode-o num quarto vazio.

– Deus do céu! Dormirá na cela de Constâncio. O prior tem medo de bisbilhotar no quarto de um morto. E a alimentação?

– A fartura do convento… Roube uma torta do prior!

– É proibido zombar no confessionário. Fora daqui, some, some.

Não mencionou o bilhete com medo de tornar Solano seu confessor. Fora visto com ele num canto escuro do cais. Suspeitavam de pederastia ou de conluio contra a ordem.

O camponês comia à noite, depois que frei Cosmo recomendava ao cozinheiro levar sua comida para a cela, por motivo de indisposição. A comida dava para um. O frade cultivava o fastio.
A saída do camponês foi vista por um bêbado; o estranho balançava o corpo da cintura para cima, encostado à parede do casario nos fundos do convento. Solano não se preocupou porque era madrugada fria, hora do retorno de boêmios do cabaré ali perto.

Três dias depois, frei Cosmo foi intimado a comparecer à polícia na capital. Mostrou a intimação ao prior. Temia viajar sem que soubessem seu paradeiro nas próximas horas. – O que anda dizendo aos rapazes e moças?

– Interpretamos a bíblia.

– Não devia interpretar. Devia repetir.

– Impossível. A juventude é curiosa.

– Suas interpretações não são próprias de religioso experiente. Ainda é um seminarista inquieto. Falta-lhe mais temor a Deus.

– Tenho respeito a Deus e amor aos homens. Não tem sentido viver sem os dois sentimentos.
– Tem sentido entregar-se a Deus; isso tem sentido!

Viajou com a curta indicação do prior:

– Vai com Deus.

No gabinete da autoridade policial, ouviu:

– Temos razões suficientes para supor que o senhor está abrigando subversivos no convento. Quem são essas pessoas?

– Recebo qualquer cristão na igreja ou no convento. Não peço a identidade de nenhum deles.

– Não quero saber quem lhe procura para aconselhamentos da alma. Quero os nomes dos terroristas.

– Não conheço.

– Não temos nada contra a privacidade dos outros, principalmente de padres. Mas não pudemos deixar de ver seu encontro com outro homem no cais, no escuro…

– O senhor espiona e deduz conforme a conveniência de seu ofício. Invade a privacidade dos outros.

– O meu ofício é deduzir.

Frei Cosmo não confessou ao prior a referência ao encontro no cais. Domingo seguinte, a sacola da coleta estendida pelo criado colheu novo bilhete.

Está acoitando terroristas no convento. Baitolo

Os jornais noticiaram a prisão de Solano com sua foto; tinha chapéu e óculos com aro de tartaruga, a barba crescida. Há muito era procurado, e mantinha relação suspeita com um frade carmelita.

O chefe de polícia foi recebido pelo prior, e tomou café com biscoitos servidos pelo criado.
– Teremos prazer em colaborar, doutor Gibson. O último sedicioso que passou pelo convento foi frei Caneca. Ainda assim para rezar sob a imagem de Jesus Cristo. Teve um fim que todos sabemos. Mas é o único registro que nós temos.

Despediram-se. O homem viajou certo de que recrutara um informante.

Frei Cosmo fechou-se no claustro com as duas voltas que a chave dava. Tirou do baú os dois bilhetes e os amassou. Podia queimá-los, mas preservou-os com algum instinto de vingança. Ouviu o cantochão. Pensou em Solano, sonhos e pilhérias, pendurado no pau de arara.

Não havia fogo nem incenso. Só um rolo do mesmo cordão que usava em volta da batina.

O criado, a mando do prior, bateu na porta com insistência. O prior, que tinha a cópia das chaves, subiu e abriu o claustro. O corpo, com a corda amarrada ao pescoço, oscilava sob a trave de madeira no telhado.