O Haiti dos quilombolas: Alejo Carpentier deste Mundo
Alejo Carpentier foi o escritor inaugural do chamado “realismo mágico” da literatura latino americana e o tema de seu romance O Reino deste Mundo, de 1948, é a revolução escrava no Haiti do final do século 18.
Por Ramón Pedregal Casanova *
Publicado 18/02/2011 15:40
O romancista cubano Alejo Carpentier (1904-1980) conta, em seu romance “O Reino deste Mundo” uma parte essencial da historia do Haiti, a dos escravos africanos em luta contra o colonialismo francês, depois contra um tirano de sua mesma raça, assimilado ao espírito escravista. Como corolário, a historia contém também uma advertência contra outros tiranos futuros, sua posterior luta contra o colonialismo francês de nova feição quando aparecem pessoas com a cor da pele mestiça, mais clara. Momentos diferentes da História do Haiti, que falam de um povo que foi o primeiro dar tudo por sua libertação, antes de 1789, ano da Primeira Declaração dos Direitos do Homem; a Declaração dos Direitos da Mulher seria escrita 3 ou quatro anos mais tarde. O Haiti dos cimarrons (quilombolas), dos lutadores pela liberdade, primeiro povo livre, e Carpentier ganha alturas ao mostrá-los combatendo a barbárie ocidental, aqui contra a monarquia francesa e seus continuadores, e que se armaram de uma convicção apaixonada por sua liberdade. Carpentier deste mundo. Três rebeliões que ensinam ao leitor as mudanças na historia, os vertiginosos e imensos impulsos para derrotar os escravistas. O Haiti tem essa parte de sua história no romance “O Reino deste Mundo”.
No início do romance um diálogo entre de Lope entre o Demônio, que e o rei do Ocidente, e a Providência, em que o Demônio pergunta: “De onde enviastes Colombo para renovar meus danos”? E começa o romance com uma cena que é a metáfora dos resultados da revolução francesa do final do século 18: enquanto o mestre tem a cabeça raspada pelo barbeiro, o escravo contempla em uma vitrine quatro cabeças de cera que parecem reais, figuras pálidas com suas correspondentes figuras, separadas por um pequeno quadro com cabeças de carneiro, as duas coleções postas sobre um tapete vermelho, e Ti Noel, o escravo, se diverte pensando naquele resultado. Mas não ficou nisso. Na tenda contígua, uma biblioteca parecia se referir à queda futura da escravidão mostrando suspensas quatro estampas do rei da França e outras tantas cabeças da Corte, além das de militares e juízes. Também diz o narrador que havia algumas dos “ingênuos” que impulsionaram a revolução, para terminar declarando que a representação destes não era compreendida por Ti Noel, os escravos. Os escravos são o último degrau e são os que mudam o curso da história, são o personagem protagonista coletivo, e que deixam aberto o horizonte no romance. Há algo que destaca sobre todo o resto: uma gravura que representa o embaixador francês sendo recebido por um mandatário negro, parecendo referir-se ao futuro em que o Haiti é independente da França. Nas atuais circunstâncias do Haiti é possível dizer que tenha conseguido isso?
Carpentier, conhecedor da história desse povo tão castigado, escolheu três revoltas de escravos, entre os séculos 18 e 19 para levar a cabo uma obra que nos mostra a raiz dos problemas causados pela exploração da aristocracia e da burguesia francesas. Herói dos civilizados escravos, sim, civilizados escravos, contra selvagens franceses, sim, selvagens franceses, é Mackandal, capaz de se converter em qualquer ser vivo para melhor confundir e combater aos colonos. Além disso, ensina aos escravos seu passado, deixa em sua memória aquilo em que se reconhecem e serve a eles de fonte de consciência à medida em que se os infla, os abastece, de energias para o combate. A memória histórica ensina, Mackandal ensina, e o resultado aparece. E assim encontram alguma voz solidária que lhes dá a conhecer a abolição da escravidão alimentando e produzindo uma rebelião contra os tiranos franceses que não querem acabar com ela no Haiti. O substituto dos monárquicos franceses é um negro, mas um negro que se proclama rei e escraviza a população outra vez. Ele será substituído por agrimensores que falam francês e eram protegidos por um exército de “mulatos republicanos” que expulsaram os camponeses, negros, de suas terras, e fazem, terminada a escravatura, uma nova lei que obriga a trabalhar, aristocracia entre duas águas, uma casta quarterona, mestiça, que agora se apodera das antigas fazendas, dos privilégios e dos cargos.
Nosso personagem protagonista aprende a história de sua raç,a e conhece e experimenta as mudanças reais, maravilhosas, em outros seres naturais, advertindo que Mackandal, o escravo cimarrom (quilombola) que admirou e com quem tanto havia aprendido, “se disfarçara sob a forma de animal, durante anos, para servir aos homens, não para desertar do território dos homens, … pois o homem ânsia sempre por uma felicidade situada além da porção que lhe é outorgada. Mas a grandeza do homem está precisamente em querer melhorar o que ele é. Em impor tarefas a si mesmo. No Reino dos Céus não há grandeza a conquistar pois lá tudo é hierarquia estabelecida, incógnita, despejada, existir sem fim, impossibilidade de sacrifício, repouso e deleite. Por isso, oprimido por penas e tarefas, formoso dentro de sua miséria, capaz de amar em meio às pragas, o homem só pode encontrar sua grandesa, sua máxima medida, no Reino deste Mundo”. E então formoso, a natureza se rebelará acompanhando a rebelião dos oprimidos, outra vez “o Ancião (Ti Noel) lançou sua declaração de guerra aos novos amos”.
Todos os acontecimentos na cronologia histórica têm sua própria data, que Carpentier expõe em consonância com o tempo romanesco, assim como emprega o número dos capítulos para estabelecer paralelismos entre eles, criando uma ordem interna de funcionamento. Na criação simbólica, emprega ideias provenientes das festas cristãs para o surgimento final de personagens e aconteceres, buscando a simbolização da intemporalidade. Há um aspecto que caracteriza uma parte da literatura latino-americana em suas histórias, que Alejo Carpentier denominou “real maravilhoso” e, em algumas ocasiões, encontramos comentários críticos equiparando-o ao “realismo mágico”. Carpentier, no prólogo que escreveu “O Reino deste Mundo” (há edições que não o incluem) e também em um livro de entrevistas de Ramón Chao (“Conversaciones con Alejo Carpentier”, publicado pela Alianza Editorial), al falar sobre “O Reino deste Mundo” o define da forma que exponho, aqui, de maneira resumida: “os dicionários nos dizem que o maravilhoso é oque provoca admiração por ser extraordinário, excelente, admirável. O extraordinário não é obrigatoriamente belo ou formoso. Não é belo nem feio: é sobretudo assombroso, tudo o que sai das regras estabelecidas é maravilhoso. Perrault define o maravilhoso. Falando das fadas, diz que elas podem emitir diamantes pela boca quando estão de com humos, ou arrojar répteis, sobras, serpentes e sapos quando se enfurecem…Todo o insólito é maravilhoso. Contudo, eu falo do real maravilhoso ao me referir a certos fatos ocorridos na América, a certas características da paisagem, a certos elementos que nutrem minha obra. …O que ele (Franz Roth) chamava realismo mágico era simplesmente uma pintura onde se combinam formas reais de umas maneira em desacordo com a realidade cotidiana. … (o) realismo mágico… é uma imagem inverossímil, impossível… (por exemplo) a pintura de Chagall, onde se vêm vacas voando…, burros sobre telhados das casas,… elementos da realidade mas levados a uma atmosfera de sonho, a uma atmosfera on írica. … Na pintura surrealista tido está premeditado e calculado para produzir uma sensação de singularidade, … como os relógios moles de Dali. O real maravilhoso que defendo é o que encontramos em estado bruto, presente e onipresente em todo latino-americano. Aqui o insólito é cotidiano, sempre foi”.
Em “O Reino deste Mundo” nos encontramos com forças da natureza que anunciam e impulsionam a história, ao escravo que se converte em inseto, pássaro ou qualquer outro animal para passar despercebido diante dos escravistas. Conta-se que na construção dos muros do castelo se misturava cimento com sangue de touro para torna-los mais fortes. O real maravilhoso está não em uma criação artificial ou artificiosa. Com Alejo Carpentier o trabalho revolucionário na arte foi internacionalismo revolucionário cubano com a linguagem e o espírito da América Latina e, ao escrever sobre o Haiti, resgata a história roubada ao povo haitiano pelos colonizadores franceses e, em nossos dias, por todos os imperialistas, de um lado e outro do Atlântico.
CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1985.
Fonte: Rebelión
* Ramón Pedregal Casanova é autor de “Siete Novelas de la Memoria Histórica"
(trechos)
"Enquanto esperava seu amo na barbearia, Ti Noel olhava as cabeças de bezerro e imaginava a cabeça dos brancos servida ao lado, na mesma bandeja. Em sua imaginação, comparava o rei branco com o rei negro, pois o rei negro é que era um rei de verdade, capaz de ir às batalhas, sua virilidade capaz de fecundar as mulheres dando origem à verdadeiros príncipes. Mackandal, o mandinga que contava histórias de heróis africanos, de reis, falava sempre em São Domingos: local livre, onde os negros é quem iam mandar. Na moagem da cana, entre uma pausa e outra estava sempre a profetizar a vinda de um novo reino. Certo dia, durante a moagem, escuta-se os gritos, como estrondo de um trovão, vindo do engenho. O grito ecoou ao longe, até as colinas. Todos deixaram seus afazeres e correram em direção ao engenho. Quando chegaram, depararam-se com Mackandal puxando seu braço esquerdo que fora engolido junto com a cana. Mackandal após ter sua mão e parte do braço engolido pelas engrenagens do engenho foi mandado para o pasto, a fim de vigiar o gado. Às vezes Ti Noel desaparecia, pois fugia para conversar com Mackandal. Este, durante esse tempo, se ocupou de descobrir ervas e cogumelos venenosos. Um dia, Mackandal desapareceu. Seu amo, não se preocupou em gastar energia para procurá-lo, pois pouco valia um escravo com um braço a menos. Quem encontrasse o escravo "maneta" o avisaria; já era sabido que todo mandinga era desordeiro, demônio e revoltado e que escondia dentro de si um fugitivo em potencial. Para os outros escravos, se Mackandal já posava de herói, o respeito que lhe era atribuído crescera, pois fugir para as montanhas era o sonho de todos. O mandinga tinha alguém a quem confiar em cada fazenda da região, o que facilitou o seu trabalho”
"O som dos sinos ecoavam sem cessar anunciando novas mortes. Os sacerdotes abreviavam o latim para atender as extrema-unções que sempre chegavam muito tarde. Tomados por medo de tomar água dos poços os colonos viviam embriagados pelo vinho, e açoitavam os negros em busca de respostas. Certa tarde, para livrar o traseiro de uma carga de pólvora, um negro acabou confessando. Disse que o mandinga Mackandal, eleito pelo povo de outra costa, para acabar com os brancos e criar um império só de negros em São Domingos, foi tomado de poderes extraordinários advindo de vários deuses superiores. Nessa mesma tarde organizaram uma caça a Mackandal".
“Durante a cantoria, surge, da noite, a figura de Mackandal, o mandinga, o maneta. Ninguém o saudou. Malgas de águardente percorreram várias mãos até chegarem à uma só: a de Manckandal. Ti Noel via vestígios de animais dos quais se transformara. Algumas escamas de peixe, olhos puxados como certas aves, barba como pelos felinos, resquícios das roupas de animais por ele vestido para se livrar da pele de homem durante sua fuga. Puseram-se a aclamar a volta de Mackandal após anos de espera. Mas brancos também têm ouvidos, e armados com trabucos, pistolas e mosquetões capturaram Mackandal. Todos os negros foram levados por seus amos em direção à praça. Lenhas eram amontoadas ao pé de um tronco onde Mackandal seria executado. Os escravos eram indiferentes a tudo que estava acontecendo, isso deixava os amos irritados, mas de que sabia os brancos das coisas de negros?”
“Armados de paus, cercaram as casas dos feitores, apoderaram-se das ferramentas, usando-as como armas e gritaram: "Morte aos amos, o governador, o bom Deus e todos os franceses do mundo." Impulsionados por instintos, saqueavam, matavam. Rindo e brigando, devastavam tudo que viam na frente”.
“Os revoltosos haviam partido em direção ao Cabo. Por todos os lados viam-se fumaças, exaladas pelos incêndio provocado pelos escravos, atingirem as nuvens. Nada que tivesse vida escapou da fúria negra: plantações, pessoas e animais. O cheiro de carne queimada dos animais, a cena de horror dos corpos dilacerados. Os negros foram controlados, mas não antes de estuprarem quase todas as moças de família da planície. A ordem era que todos fossem executados, mas Lenormand de Mezy chegou ao Cabo em tempo de impedir que Ti Noel e mais doze escravos marcados com seu ferro fossem fuzilados, não por compaixão pelas suas vidas mas por não lhe restar nada mais a não ser os seis mil e quinhentos pesos espanhóis que valeriam esse escravos.”