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Iberê Lopes: Contradições divinas

É preciso fé cega para aceitar os pré-conceitos que estão sendo difundidos em nossa sociedade, através de bocas nem tão santas assim. Todo o cuidado é pouco na hora de julgar seu próximo por sua cor de pele, identidade de gênero, convicção política ou escolha religiosa.

Por Iberê Lopes*

Ao ler um artigo do Sr. Luiz Freimuller, intitulado “Como cristãos devem se proteger das ilegalidades supremas?”, acendeu a luz vermelha em minha mente. O texto trata das decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a união entre pessoas do mesmo sexo. Será que estamos retornando ao mundo apocalíptico das cruzadas, onde diferenças ideológicas e diferentes nominações para a divindade eram motivo para perseguições e assassinatos?

Mais espantado fiquei quando li a linha de apoio do artigo, onde claramente outras afrontas à democracia e à diversidade são evocadas, desrespeitando nossa Carta Magna. “O exemplo do STF revelou uma intenção óbvia: os movimentos da esquerda cultural querem destruir todo o patrimônio cultural e simbólico do cristianismo na sociedade”, aponta o Sr. Luiz Freimuller.

É claro que não vou reproduzir todo o restante, pois não é papel de um comunista, umbandista e defensor da diversidade destacar falas tão carregadas de dogmas e tão contrárias aos direitos humanos. Mas é hora de rediscutir as relações do Estado com as instituições religiosas. Não é possível que políticas públicas de combate a qualquer natureza de preconceito, como o kit anti-homofobia produzido pelo Ministério da Educação, sejam freadas por não estarem de acordo com convicções divinas desse ou daquele seguimento filo-religioso.

A dignidade da pessoa humana, prevista no Artigo 1º, Parágrafo III, deve ser a linha mestra na execução de medidas que previnam violência e isolamento de alguns cidadãos por escolha religiosa e política. O direito natural seria possível se todos na sociedade estivessem prontos para exercer o respeito às diferenças, se essa mesma diferença não fosse uma desculpa eterna para as desigualdades.

Não é preciso recorrer aos deuses para perceber que negros e homossexuais sofrem mais em seu local de trabalho, são massacrados literalmente por “seres humanos” com concepções retrógradas ao andar pelas ruas. E, como se não bastasse, devem estar fora do ordenamento jurídico brasileiro por serem “pecadores”. Segundo o deputado Jair “Reacionaro”, um cidadão que ousar ter postura diferente da “maioria” deve ser castigado para retornar à “normalidade”, e agora aparecem os que querem “salvar almas perdidas na libertinagem” do mundo moderno.

É necessário atentar às guerras civis geradas em outros países pelas mesmas motivações que emergem em nosso diverso Brasil. Já afirmamos a liberdade democrática nos anos 60 e 70, mas, pelo visto, temos que manter a “fé cega e um pé atrás” até que as tradições medievais não retornem ao seio da sociedade.

A defesa da laicidade do Estado, por líderes políticos de esquerda e movimentos pelos direitos humanos, merece reflexão sobre sua contemporaneidade. Vale lembrar: Constituição Federal, Artigo 5º, Parágrafo VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. Vamos combater desigualdades com pré-conceitos ou reverter a lógica da massificação cultural e reprodução de dogmas?

Por fim, não menos pasmo fico, e tenho fé que todos ficarão, em relação a como tratamos nosso próximo em sua individualidade, com tamanho individualismo e contradição divina. Compreender que aceitar não implica em uma necessidade intrínseca de concordar seria um começo doloroso, mas extremamente útil para a emancipação do homem como “ser humano”.

Que tal começarmos por concepções elevadas que Jesus nos ensina de que, se tratarmos uma pessoa com desprezo, estamos maltratando uma pessoa criada à imagem de Deus; estaremos ferindo alguém que Deus ama e por quem Jesus morreu.

Podemos refletir sobre esse assunto em uma parada na Avenida Paulista, degustando um delicioso acarajé e matando a sede com um amargo chimarrão em uma homenagem clara à diversidade do povo brasileiro.

*Iberê Lopes é estudante, curioso, comunista e umbandista.