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Evanildo Bechara: Nas sendas de um mestre

Estávamos em 1943. Eu, aos 15 anos, procurava um orientador de apoio, para que, num futuro próximo, pudesse ser aos meus alunos um professor que lhes levasse um guia seguro numa disciplina que já havia escolhido: língua portuguesa.

A leitura do prefácio da "Lexicologia do Português Histórico", de 1921, e as percucientes investigações desenvolvidas nas páginas de "Dificuldades da Língua Portuguesa", de 1908, foram decisivas para elegê-lo "il mio autore", como Dante elegera Virgílio para ajudá-lo a percorrer os ínvios caminhos do Inferno pela jornada empreendida na "Divina Comédia".

A minha eleição recaía em Manuel Said Ali, fluminense de Petrópolis, nascido em 21 de outubro de 1861, filho de mãe alemã, da primeira geração de alemães que colonizaram a cidade serrana, e de pai árabe ou turco, Said Ali. Morava no Rio, no bairro da Glória. O eleito estava nos seus viçosos 82 anos, e a sua casa era a Meca visitada pelos antigos alunos de alemão do Colégio Pedro 2º e por mestres consumados do vernáculo, como Antenor Nascentes, Sousa da Silveira e Manuel Bandeira, e alguns professores da geração mais nova, como Jesus Belo Galvão.

A primeira visita, mais formal, foi para dissipar dúvida de leitura da sua "Gramática Histórica" (segunda edição, 1930). Aí confessei-lhe minha intenção de ser, no futuro, um diligente e honesto professor de língua portuguesa.

Na segunda visita, uma semana depois, desceu sobre nós uma atmosfera de amizade que duraria, em encontros semanais, até seu falecimento, em 27 de maio de 1953. Nesses fecundos encontros, apontava-me os teóricos da linguagem que precisava conhecer; ensinava-me a ler metodica e profundamente os autores chamados "clássicos", de Fernão Lopes a Herculano, Julio Dinis e Machado de Assis –e, principalmente, ajudava a desenvolver na criança que eu era uma educação de severo e cuidadoso cientista.

Lembro-me, como se hoje fora, de dois conselhos que logo me inculcou, iniciados nossos encontros. Primeiro conselho: Nunca confie de pronto nas citações que encontrar durante suas leituras; levante-se, procure localizá-las para ver se a transcrição está correta ou, quando fiel, se o autor a interpretou corretamente, ou se tresleu. Pela vida afora, digo-lhe que já tive citações assim, concluiu.

Segundo conselho: Nunca repita uma lição, ainda que de mestre eminente, sem examiná-la e se convencer de seus fundamentos. E, rindo, acrescentava: mesmo que esse mestre seja eu.

E, em seguida, discutia alguns dos falsos ensinamentos em estudiosos nacionais e estrangeiros de muita reverência. Nenhum de nós é dono da Verdade; mas, com guias de alto valor como Manuel Said Ali, temos a certeza de estar caminhando pelas sendas luminosas de um verdadeiro mestre. Que esse testemunho de meus 83 anos caia em terreno fértil da nossa juventude estudiosa.

Evanildo Bachara é gramático e escritor, publicado originalmente na Folha de S. Paulo 31 de julho de 2011