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Disputar a interpretação jurídica e distribuir poder econômico

O Estado Democrático de Direito revela um entrelaçamento entre o poder político legitimado pelo povo com a regulamentação do poder estatal pelas normas jurídicas. Assim, as regras e princípios jurídicos são resultantes das clivagens existentes na sociedade que sofrem impacto direto dos interesses de classe que disputam o rumo da ordem jurídica.

Por Augusto Vasconcelos*

Falar em inclusão legal passa necessariamente por abordar aspectos hermenêuticos da ciência jurídica, bem como uma análise institucional dos poderes da República, especialmente do Judiciário, algo que este texto não se propõe a esgotar em face do limite de linhas proposto nesta pulicação.

Assim, durante largo período de predomínio do pensamento Positivista, houve uma tentativa de esvaziar o Direito de seus aspectos culturais e políticos, numa busca de aproximá-lo das ciências exatas. Inspirado no Cartesianismo e na linearidade de raciocínios, o Direito passou a ser submetido à mera subsunção do fato à norma durante boa parte dos séculos XIX e XX.

O intérprete, durante muito tempo, passou a ter papel passivo de contemplação da realidade, visto que sua atribuição fora reduzida ao simples mecanismo de acoplar o fato à norma adequada, sem a realização de mediações com a realidade. Todavia, especialmente com o fim da segunda guerra mundial inaugurou-se novo momento para o Direito.

O pós-positivismo, como ficou conhecido este período, propunha o reencontro do Direito com o embate em torno de valores. Dessa forma, a relação do Direito com a Política foi aguçada. Aliás, o Direito e a Política são “faces da mesma moeda”, de modo que o primeiro surge em sua decorrência e, ao mesmo tempo, regulamenta os mecanismos da disputa, exigindo que as abordagens teóricas sejam interdisciplinares.

Por esse motivo, ganha relevo a atribuição julgadora. Entendida como atividade política, o julgamento em um órgão do Judiciário não está incólume às disputas existentes na sociedade. A lei é uma mensagem do Legislativo, com a aquiescência do Executivo, nos casos em que houver sanção, para a sociedade, apresentando a conduta desejável para o Estado e os cidadãos. Porém, em virtude de ser linguagem, possui caráter plurívoco, a ensejar mais de uma possibilidade de interpretação.

Ou seja, o que estamos propondo é que, a despeito de ser intrumento de dominação de classe, em regra, ao mesmo tempo a lei pode ser instrumento de libertação, a depender do rumo de sua interpretação. Assim, a inclusão legal a ser obtida para a maoiria do povo passa necessariamente pela preparação de um arsenal interpretativo que consiga consolidar-se como hegemônico frente aos interesses do capital, pertencente a uma minoria. Inúmeras leis possuem forte conotação simbólica que permitiria, inclusive, vários mecanismos para sua decodificação, especialmente nosso texto constitucional.

Em um cenário de luta política institucionalizada não podemos negar o esforço de disputar a fase de elaboração legislativa, o que deve ser exercido pela pressão dos movimentos sociais, e pelos eleitores em geral. Porém, ao mesmo tempo, devemos intensificar a disputa em torno da aplicação desse mesmo Direito.

Diante disso, o espaço institucionalizado para apreciação dos conflitos é o Judiciário, que assume precipuamente a função jurisdicional, dando a palavra final. Por outro lado, um balanço sobre a atividade do Judiciário em nosso país fatalmente recairia em problemas recorrentes como a morosidade e a falta de eficiência, ocasionadas por uma série de fatores.

O acesso à justiça deve ser analisado sob diversos aspectos. A gratuidade para os mais pobres, o fortalecimento da defensoria pública e do Ministério Público, bem como dos sindicatos e entidades de classe são elementos fundamentais para que o Judiciário possa ser acessível. Ademais, diante do hiato entre as condições econômicas presentes na sociedade, as causas coletivas devem ter sua importância robustecida, predominando em um cenário que atualmente prevalece as lides individualizadas.

Quantas situações relacionadas à defesa do consumidor, violação de direitos trabalhistas, danos ambientais, poderiam ser tratadas na esfera da proteção dos interesses difusos e coletivos, quando o são na verdade por centenas de milhares de ações judiciais individuais? Estabelecer uma cultura coletivista nas lides judiciais não é tarefa simples, visto que esbarra na necessidade de fortalecimento das instituições públicas e movimentos sociais que cumprem este objetivo.

Além do mais, o intrincado e complexo sistema processual permite que processos se arrastem ao longo de anos, quiçá décadas, sem um desfecho. A entrega da prestação jurisdicional por parte do Estado precisa ser eficiente para que não se perca o resultado útil, com o fito de assegurar a justiça.

Neste quesito, a desigualdade econômica manifesta-se de maneira gritante. Enquanto as grandes empresas e oligopólios dispõem de um arsenal de bancas de advocacia altamente especializadas, a defensoria pública não consegue dar conta da demanda de proteção dos hipossuficientes. Assim, até a tramitação dos processos em cartório, em regra, acaba favorecendo os interesses mais poderosos. Na condição de réus, o poder econômico consegue frear o itinerário processual, na condição de autores conseguem impulsioná-lo.

A Constituição de 1988 trouxe à tona a idéia de democracia participativa, onde a sociedade teria espaço para, ao lado do poder institucionalizado, contribuir na elaboração de nosso direito. Nos últimos anos, verificamos que o Estado ampliou os espaços de participação como os Conselhos e as Conferências sobre variados temas. Todavia, apesar dos avanços obtidos estes revelam-se insuficientes. Especialmente se levarmos em conta que o plebiscito e o referendo foram instrumentos pouco utilizados na história de nossa recente democracia.

Portanto, não há saída para uma verdadeira inclusão legal se ela não atingir também o aspecto econômico. Quando o projeto nacional de desenvolvimento é “sabotado” pela alta taxa de juros, supervalorização do real frente ao dólar e contingenciamento das políticas sociais, aprofundam-se as desigualdades e a concentração de renda, fortalecendo o campo das injustiças, com reflexos diretos na vida do Judiciário, consequentemente asfixiando o conjunto de belos enunciados presentes em nosso texto constitucional. Lutar pela sua implementação é tarefa dos que querem construir justiça em nosso país.

*Augusto Vasconcelos é advogado, professor universitário, vice-presidente do Sindicato dos Bancários da Bahia, pós-graduado em Direito do Estado (UFBA), mestre em Políticas Sociais e Cidadania (UCSal), Doutorando em Direito (UMSA), pesquisador do NPEJI/CNPq (Núcleo de Pesquisas e Estudos sobre Juventudes, Identidades e Cidadania). Foi diretor da UNE (2001-2003), Presidente estadual da UJS/BA (2004-2006) e Conselheiro nacional de juventude (2005-2007).