Mozart das lavadeiras
Por Jeosafá Fernandez Gonçalves (*)
Publicado 21/10/2011 16:49

JB foi despertado do flash back de entrevero socialista pela música profundamente linda e profundamente melancólica que, através da parede, chegava abafada a seus ouvidos, vinda do apartamento ao lado.
Embalou-se por alguns segundos na névoa de notas melodiosas, plásticas e entorpecedoras, levantou-se da banqueta, deu chauzinho para as fotografias do espelho e foi à campainha da vizinha, importuná-la talvez.
̶ É você, Jão.
̶ Quem podia ser?
̶ Fala
̶ É essa música. Lembra de quando eu era pequeno e ficava vendo minha mãe lavar roupas no tanque.
̶ Mozart lembra sua mãe lavadeira?
̶ É. Ela punha LPs de música clássica numa vitrola portátil para ouvir enquanto lavava roupas. Desde essa época, Mozart para mim combina com sabão em pó e alvejante. Até hoje, quando ponho a roupa na máquina de lavar, ligo o rádio em estação de música clássica para abafar o som da trepidação dela.
̶ Mas não estou lavando roupa, estou passando. Pega café na garrafa térmica, senta em algum lugar e fica quieto, que gosto de passar roupa ouvindo Mozart.
̶ Tá.
JB fez o que Nenê mandou. A mãe no tanque e a namorada na mesa de passar roupas se sobrepunham, condensadas pela música diluente de Mozart. Fosse qual fosse o dia da semana, aquele momento era um domingo à noite, desmaiado, perdido no tempo, ou melhor, solto num lapso atemporal.
Nenê, ali, concentrada nas volutas barrocas da sinfonia, a alisar a roupa amorosamente era todas as mulheres de Itaquera, todas as mulheres pobres do mundo, todas as mulheres trabalhadoras havidas e por haver, na lida de tornar a roupa mais macia para se vestir e a vida mais digna para se viver.
Deu um nó na garganta do cineasta, que observava a companheira como se ela fizesse parte da orquestra em transe na execução dos movimentos sinfônicos.
O primeiro andamento muito alegre da sinfonia número quarenta avançava célere, com Nenê exibindo virtuosos solos de ferro quente sobre camisetas de malha e calças de algodão. Jeans, regatas, camisas de todas as cores, fronhas ganhavam aparência de novas. Que dignas, que macias, que mozarteanas, que… humanas.
Um toque do dedo indicador de Nenê fez a música saltar. Agora era a Pequena Serenata Noturna.
As pilhas de roupas amassadas iam se reduzindo, enquanto as pilhas de roupas alisadas iam crescendo. Peças mais delicadas iam direto para cabides pendurados no varal provisório que cruzava a sala. Peças de gaveta, iam sendo dobradas com mãos de violinista.
Agora, a parte mais difícil, a que a mãe moça de João mais ouvia, ela que chorava sobre a água do tanque nesse momento tão lindo e triste: o do Andante do Concerto 21 para piano.
Nenê, firme na lida do ferro quente, tornou-se vaga, distante, nostálgica. Ou João estava efetivamente apaixonado, ou Nenê era a mulher mais linda mundo, ou Mozart revelava a beleza escondida sob o pano turvo da realidade, ou era tudo isso junto ao mesmo tempo.
A namorada alisava o pano, erguia a face, olhava através da janela do apartamento, cujo vidro aparava o chuvisco, e baixava novamente os olhos para a tábua de passar roupas. Faltava pouco, mas a expressão de cansaço somada à pungência do Andante tornavam o final de domingo uma peça interminável de beleza, angústia e atemporalidade.
As gotículas a cintilar no vidro da janela à luz de neon da rua lembravam o braço da vitrola a deslizar nas faixas lustrosas do LP de vinil, no qual um pouco de água da torneira sempre respingava.
̶ Sabe por que ouço Mozart quando passo roupa, Jão?
̶ Não dá pra saber o que uma mulher pensa, nunca.
̶ Odeio passar roupa, mas Mozart torna tudo leve, tudo digno, tudo suave. Quando desperto do transe, passei todas as pilhas. Com certeza, Mozart amava as lavadeiras.
João pensou que sua mãe também talvez odiasse lavar e passar roupa. Quem garante que o que a fazia derramar lágrimas na água do tanque não fosse a música do gênio barroco, mas o ódio da vida idiota em comparação com a música celestial?
̶ Vem cá.
Nenê levou o namorado pela mão à janela, abriu o vidro para o reflexo interno não atrapalhar a visão e apontou com o dedo indicador da mão direita a noite de chuvisco.
̶ Olha para todas aquelas janelas.
Em cada uma, num conjunto habitacional apinhado de prédios, uma mulher esfalfada, com pilhas maiúsculas de roupas para passar, encerrava o domingo melancólico.
– Elas não conhecem Mozart, Jão.
João baixou os olhos, certo de que a vida sem arte verdadeira não tem a menor chance de ser digna:
̶ Mas tem uma beleza de cinema nisso que elas estão fazendo, que você está fazendo…
̶ Você só consegue pensar em termos de imagem, de cinema?
̶ Acho que sim. Desde criança, quando o sol era para mim uma borra de luz amarela, alaranjada, depois avermelhada, afundando entre os morros do algodoal.
No CDPlayer, o Segundo Movimento do Concerto para Clarinete estendia um Mozart humano, morno, suave e tristonho. Tangidas pelo vento, gotículas de chuvisco iluminavam-se próximo às luminárias de neônio, depois, sumiam-se na sombra.
Findo o Concerto para Clarinete, silêncio de prelúdio, quando a máquina busca o início da próxima trilha. Pronto, o leitor digital encontrou o que procurava, e um doce, gotejado, pungente som invadiu a atmosfera do pequeno apartamento como um vapor de água subido de ferro quente.
JB moveu-se lento no espaço exíguo e apanhou o estojo do disco. Parou os olhos na trilha do Concerto para Piano em Dó Maior, KV 427, número 21, Andante.
Confirmada a dúvida que espiralara ao compasso da harmonia impregnante, retornou a seu lugar, ao lado de uma Nenê cismada com as silhuetas escuras e ágeis nas janelas semiluminadas.
̶ Isso é cinema ou não é?
̶ Não, não é não, Jão. Olha direito.
Nas janelas dos prédios envoltos na noite, silhuetas dançantes entre pilhas de roupas formavam um teatro mágico de sombras ao final de um domingo chuvisquento, melancólico mas não perdido em vãs divagações.
(*) O paulistano Jeosafá Fernandez Gonçalves foi jornaleiro, operário metalúrgico, vendedor de roupas, porteiro de cineclube, entre outros, até tornar-se professor formado pela Faculdade de Literatura, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Publicou seu primeiro livro em 1986 e reúne hoje em sua obra, entre poesia, ficção, ensaio e ensino, mais de quarenta títulos. Ele acaba de lançar os volumes iniciais de uma série dedicadas aos bairros paulistanos onde viveu: “Era uma vez no meu bairro – Zona Norte” e “Era uma vez no meu bairro – Zona Leste” (do qual o episódio aqui reproduzido foi retirado).