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Os EUA aumentam a pressão sobre o Paquistão

A visita, sem precedentes, de pesos pesados estadunidenses encabeçados pela secretária de Estado Hillary Clinton sublinha a arriscada política de submeter a máxima pressão vínculos já muito tensos que os EUA estão em vias de executar.

Por M. K. Bhadrakumar*

Quando se fala que está em preparação um conflito militar na fronteira afegã-paquistanesa, poderia pensar-se que algo de impensável estaria a suceder. Washington joga um perigoso jogo na busca de uma justificação para a manutenção de bases das suas forças armadas no Afeganistão.

Numa formulação diplomática cuidadosamente escolhida, o ministro das Relações Exteriores da Índia, S. M. Krishna, advertiu para as consequências devastadoras que haveria se os EUA e o Paquistão não conseguirem resolver o seu diferendo. Krishna decidiu fazer esta declaração na presença do ministro das Relações Exteriores francês Alain Juppé, na conferência de imprensa conjunta em Nova Delhi. A França acaba de retirar o primeiro contingente de 200 soldados do Afeganistão, iniciando o seu plano de retirada do país. Krishna declarou:

“Isto diz respeito à relação entre duas potências amigas, os EUA e o Paquistão, e o desejo da Índia é que todos os problemas pendentes entre elas sejam solucionados à mesa das negociações e que, dessa forma, seja criada na região uma situação que conduza ao desenvolvimento. Porque seja o que for que perturbe a região, terá devastadoras consequências para a agenda de desenvolvimento de outros países, e em particular da Índia. Portanto esperamos sinceramente que possam resolver os seus diferendos.”

Esta declaração representa a mais clara afirmação da Índia, até ao momento, de que as estratégias dos EUA para a região não funcionam nem invariável nem necessariamente em função dos interesses da segurança e da estabilidade regional.

Em segundo lugar, é também o sinal mais claro já dado pela Índia de que não participa na pressão tática estadunidense contra o Paquistão. A Índia mantém-se claramente afastada do terreno de disputa estadounidense-paquistanesa e traça o seu próprio caminho em relação ao problema afegão e certamente em relação ao diálogo com o Paquistão. Se na declaração de Krishna os EUA fossem substituídos por Índia, a formulação poderia ter pertencido à sua homóloga estadunidense Hillary Clinton.

Entretanto, o que se destaca sobretudo é que Delhi está muito preocupada com a recente imprevista viragem e sente que é necessário tornar públicas as suas preocupações. Krishna falou precisamente no momento em que Clinton chegava ao Paquistão.

O fato é que parece que o impensável está a suceder. Cada vez se fala mais em que algum tipo de conflito militar poderia estalar na fronteira afegã-paquistanesa. Com uma candura inusitada, o chefe do exército do Paquistão, Parvez Kiani, admitiu na terça-feira que não excluiria um ataque dos EUA contra o Paquistão. O jornal britânico The Independent citou fontes do exército paquistanês que afirmaram que a crescente concentração de tropas no setor oriental da fronteira afegã têm o significado de uma acção coordenada.

O assunto essencial é qual a vantagem tangível que poderia resultar de uma ação militar dos EUA contra o Paquistão. Um conflito militar sem um objetivo definido e preciso traz sempre consigo o risco de gerar consequências imprevisíveis. Enquanto político que se prepara para uma dura batalha eleitoral, um conflito militar com a participação de tropas estadounidenses e com prováveis vítimas de guerra não corresponderia aos interesses do presidente Barack Obama. Sendo assim, qual é o plano de acção?

Guerra por encomenda

O ponto de partida é que a guerra afegã não pode ser ganha por meios militares. O enquadramento orçamentário em Washington e a oposição à guerra por parte da opinião pública ocidental obrigam os EUA a procurar uma solução política, enquanto as estratégias regionais mais vastas dos EUA na Ásia e o plano para o desenvolvimento da Otan como força global requerem o estabelecimento a longo prazo de uma força militar no Afeganistão.

A dupla moral dos EUA relativamente à rede militante Haqqani ilumina essa questão. Há apenas dois meses, funcionários dos EUA reuniram-se com a direção da Haqqani na presença do chefe da Direção Inter-serviços de Inteligência (ISI) do Paquistão, Shuja Pasha. O canal oculto entre os EUA e Haqqani continua funcionando, mesmo na atualidade, e é concebível que o ISI continue a prestar serviços como intermediário. O que se passou subitamente, entretanto?

É presumível que qualquer ataque dos EUA contra o Waziristão, nas zonas tribais do Paquistão, se basearia na débil esperança de dividir os pashtuns de modo a enfraquecer a oposição concertada que estes últimos têm mantido contra a instalação de bases militares estadunidenses. Mas a realidade no terreno é que, mesmo que tivesse êxito a divisão dos talibans entre diferentes facções e que os EUA, mesmo a uma escala muito limitada, conseguissem introduzir cunhas entre essas facções, os pashtuns têm uma longa tradição de unificação sempre que se trata de enfrentar o ataque estrangeiro.

Estas circunstâncias obrigam os EUA a depender do Paquistão para conseguir que os grupos talibans se adaptem ao seu acordo estratégico com Cabul, que está inteiramente na disposição de assinar.

Washington obtém um acordo ótimo com Cabul na base das suas próprias condições as quais, no fim de contas e apesar das suas ocasionais fanfarronadas, o presidente afegão Hamid Karzai não pode influenciar, dada a sua lastimosamente débil posição no tabuleiro do xadrez político afegão.
Mas as areias movediças da política afegã (e regional) são traiçoeiras e Washington gostaria de concluir rapidamente um acordo. O tempo esgota-se, já que se espera que o acordo seja assinado perante o pano de fundo diplomático das duas próximas conferências internacionais sobre o Afeganistão, a 2 de Novembro em Istambul e um mês mais tarde em Bonn.

Que meios de pressão sobre o Paquistão têm os EUA de forma a impor-lhe uma mudança na sua política afegã? Falando claramente, há já tempo que os EUA vêm utilizando os talibans paquistaneses para causar estragos no interior do Paquistão, e essa guerra por encomenda acabou por sair à luz do dia com a afirmação feita esta semana pelos militares paquistaneses de que a coligação dirigida pelos EUA no Afeganistão oriental ignora os pedidos de Islamabad de envio de informação específica no que diz respeito ao comando dos talibans paquistaneses que operam a partir de refúgios em território afegão lançando ataques no outro lado da fronteira.

É bastante óbvio que os militares paquistaneses compreenderam a mensagem política por detrás desses ataques. Mas continuam a recusar adaptar-se à estratégia regional dos EUA. Por outro lado, os talibans e o ISI têm tido bastante sucesso em frustrar o estratagema estadunidense de dividir os grupos insurgentes.

A forma como foi silenciado o famoso interlocutor dos EUA com os talibans, Tayeb Agha; o incidente tragicômico em que as forças da Otan e dos EUA dialogaram com toda a seriedade com um impostor taliban por pura ignorância da sua identidade de pequeno comerciante; ou o repentino desaparecimento do terreno de jogo do Mullah Abdul Ghani Baradar, tudo isto sublinha o paradoxo de que na realidade o que convém ao Paquistão é que os grupos insurgentes se mantenham dispersos e sob o seu controle em diversos cantos e recantos do tabuleiro de xadrez.

Resposta assimétrica

Washington cronometrou cuidadosamente a sua decisão de concentrar tropas na fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão de forma a coincidir com os exercícios militares indianos que agora têm início, com dois meses de duração, e que têm a intenção de comprovar a doutrina indiana acerca da captura e domínio de território situado profundamente por detrás das linhas inimigas.

Mas se os cálculos de Washington visam a aplicação da máxima pressão psicológica sobre os militares paquistaneses, apenas revelam falta de compreensão acerca do que leva a direção militar a recorrer a um desafio estratégico semelhante. (É interessante que o Paquistão venha minimizando os exercícios militares indianos e que os poucos casos de retórica injustificada acerca dele, e inclusive o recente pacto de segurança entre Delhi e Karzai e que, pelo contrário, esteja ostensivamente a atapetar com pétalas de boa vontade o caminho para a Índia, por exemplo ao atribuir à Índia o estatuto de país mais favorecido para o comércio).

Aquilo que os EUA se recusam a enfrentar é que, com razão ou sem ela, o Paquistão já não confia nas intenções de Washington. Os militares paquistaneses estão convencidos de que os EUA desenvolvem uma estratégia para arrancar os dentes ao Paquistão apoderando-se do seu arsenal de armas nucleares. Obviamente que os militares paquistaneses não dão carta-branca ao comprometimento dos seus recursos estratégicos no Afeganistão. Uma presença a longo prazo dos EUA na região é vista como uma ameaça para a soberania e a integridade territorial do Paquistão.

Os militares paquistaneses também se recusaram a cair na armadilha de lançar uma operação especificamente sua no Wasiristão do Norte que, como eles sabem perfeitamente, apenas poderia converter-se num atoleiro de tais proporções que o próprio gigante militar poderia acabar por se desintegrar.

As direções civil e militar paquistanesas estão neste momento de acordo em que a única forma de pacificar as áreas tribais é através de relações com os chefes tribais e com os diversos grupos militares e que isso vai demorar muito tempo. E entretanto o Paquistão não irá embarcar em ações precipitadas sob o incentivo dos EUA.

Alguns comentaristas apressaram-se a interpretar a declaração de terça-feira de Kiani como chantagem nuclear. Mas a decisão de enviar tropas regulares para a fronteira sugere que os militares paquistaneses resistirão e farão com que os EUA paguem um preço intoleravelmente pesado em baixas, o que Obama, político terrivelmente maltratado que se prepara para uma campanha eleitoral crucial, não está em condições de suportar.

Portanto, qualquer passo em falso com o teatro do costume e a retórica estridente que vem tendo lugar entre os EUA e o Paquistão desde o affaire Raymond Davies em Janeiro (quando o ISI e a direção militar tomaram finalmente conhecimento de toda a dimensão das operações clandestinas dos EUA no interior do Paquistão), pode chegar-se a uma guerra assimétrica na região, com consequências desastrosas para a segurança e a estabilidade regional, como disse Krishna.

A única coisa que um ataque dos EUA ao Paquistão asseguraria é que os talibans passariam a dispor de uma reserva inesgotável de recursos humanos (e de equipamentos e fornecimentos) para prosseguir a insurgência. Em termos políticos, a insurgência chegaria a assumir a natureza de uma guerra de libertação.

Em que é que isso ajudaria os EUA? Tendo em vista a situação atual em muitas das frentes de guerra; a oposição à guerra por parte da opinião pública ocidental; a crise econômica estadunidense e da eurozona; as inumeráveis insuficiências de governo do grupo em Cabul; as debilidades das forças armadas afegãs; a ilegalidade e a corrupção generalizada que abundam no Afeganistão, uma guerra assimétrica só pode resultar em vantagem para o Paquistão.

Por outro lado, um ataque estadunidense contra o Paquistão fecharia definitivamente a porta a um caminho conducente a um acordo político no Paquistão. A reação do Paquistão será firmar-se na sua posição e continuar a rejeitar o diktat dos EUA.

Ao fazê-lo, algo de importância fundamental, com graves implicações a longo prazo, poderia também suceder na economia política do Paquistão.

Basta referir que, se Nawaz Sharif foi considerado como uma desagradável alternativa enquanto sucessor de Pervez Musharraf e se Washington fez todo o possível para o afastar dos corredores do poder apenas tendo em conta os seus duvidosos antecedentes islamitas, é possível que agora os EUA tenham que aprender a conviver com algo muito pior no Paquistão.

O Paquistão não é o Camboja e não irá desintegrar-se numa anarquia. Segundo os padrões da Ásia do sul o Estado paquistanês é suficientemente forte para sobreviver. Por isso não servirá de grande coisa a guerra uma vez que os EUA, pelo menos durante um certo tempo, terão perdido o Paquistão. Washington tem de avaliar como é que isso, por seu lado, servirá aos EUA numa região altamente estratégica que forma a união entre a Ásia Central, o sul da Ásia propriamente dito, e o Golfo Pérsico. O que vai suceder ao projeto da Nova Rota da Seda?

Resumindo, e para falar com lógica, deveria prevalecer em Washington mais o bom senso do que o lançar um ataque militar contra o Paquistão. No entanto, a inédita visita conjunta a Islamabad de Clinton, David Petraeus e Martin Dempsey sublinha a que ponto é arriscada a política atual.

Máscaras e mascarada

É certo que Bruce Riedel, ex-agente da CIA que assessorou Obama sobre a guerra afegã, apoiou, num provocador artigo publicado no fim-de-semana no New York Times, que os EUA devem seguir uma política de contenção relativamente ao Paquistão.

Riedel tem toda a razão ao considerar que os EUA necessitam de uma nova política face ao Paquistão, uma vez que os interesses dos dois países não se harmonizam, estão em conflito. E não pode também ser condenado por incluir na sua lista de desejos que os EUA contenham as ambições do exército paquistanês de modo a que seja estabelecida no Paquistão uma supremacia civil, e que a sua política externa assuma uma nova orientação.

Ora bem: como é que se pode pôr a funcionar uma estratégia de contenção em relação ao Paquistão? De forma extremamente interessante, Riedel recomenda que os EUA devem criar uma relação de maior hostilidade, uma hostilidade mais concentrada, que responsabilize o seu exército [do Paquistão] e os seus serviços de informações. E acha que isso pode ser conseguido se se realiza uma incursão militar dos EUA em território paquistanês que os militares paquistaneses não consigam impedir.

Riedel conclui esta sua visualização fantasiosa com a afirmação categórica de que os EUA necessitam de bases militares no Afeganistão se quiserem empreender uma estratégia de contenção. No fim de contas, o que acontece é que a necessidade de manter uma estratégia de contenção face ao Paquistão não passa da máscara para uma elaborada justificação do estabelecimento de bases militares dos EUA no Afeganistão.

Este plano parece refletir a forma de pensar do establishment. Mas uma estratégia de contenção só pode ter êxito se se apoia sobre um forte consenso regional e internacional para isolar o país em questão. De forma ideal, terá de ser apoiada através da criação de uma aliança de países que subscreva uma estratégia comum. No caso do Paquistão esses requisitos prévios estão totalmente ausentes. O Paquistão não se encontra perante um isolamento regional.

Pelo contrário, relaciona-se ativamente com quase todos os protagonistas regionais (com exceção da Índia) no que diz respeito ao problema afegão: Irã, Rússia Tadjiquistão, China, Uzbequistão, Turquemenistão, etc. Os EUA teriam uma difícil tarefa para conseguir que os países da região alinhassem numa estratégia de contenção face ao Paquistão.

Para além do mais, demorará muito a fazer funcionar uma estratégia de contenção, se é que o consegue alguma vez (uma tal estratégia tem existido há mais de três décadas contra o Irã, e os resultados não são encorajadores). Disporá Obama de tanto tempo? De fato, se o movimento Ocupem Wall Street reflete de algum modo o estado de espírito político nos EUA, a guerra afegã não constitui uma prioridade importante na agenda nacional.

Resumindo, a intenção dos EUA parece ser de criar condições políticas e de segurança na fase pós Osama bin Laden que sustentem o motivo para uma presença militar de longo prazo. Os militares paquistaneses são pressionados ao máximo neste sentido. É possível que, nesta conjuntura, a precipitação de uma crise relativamente ao Paquistão se converta numa necessidade geopolítica, se este país não ceder. Mas trata-se de um jogo perigoso. A declaração de Krishna encontrará eco noutras capitais regionais.

*Embaixador, diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Exerceu funções na extinta União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.

Fonte: O Diário.info