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Cap. 5 – Caminhou de costas para as águas, até…

…se cobrir como uma iabá fluvial

Chica não confessou de vez o uso da liamba. Numa terça à noite, levou Maújo à beira-mar deserta de Maria Farinha. Pararam antes para tomar dois ou três goles de rum, para atenuar a tensão. Estava com vestido branco, blusa azul escuro, cor do oceano sem o luzeiro da lua; na cabeça, um véu da mesma cor, igual ao da noite do transe. Na mala do carro, sem que Maújo soubesse, pusera rodelas de inhame assado, misturadas a feijão-fradinho cozinhado, e velas azuis. Tudo aninhado numa tigela de barro luzidia. Na areia despovoada, na beira do mar sem ondas, limites do rio Timbó, depôs a oferenda a Ogum. Tirou toda a roupa, ficou de frente para Maújo, caminhou de costas para as águas, até se cobrir como uma iabá fluvial. Veio à tona mais à frente, deitando-se num banco de areia. Fez sinal para o parceiro, pediu para ele tirar do cofre do carro a pequena pochete, fechada com zíper, e recomendou que não a molhasse.

Ele, nu, a entregou. Chica tirou um lenço de toalha, enxugou as mãos, os lábios. Pegou a fina liamba preparada antes, um isqueiro e acendeu. Fumou mastigando os tragos, como ninguém fuma um cigarro industriado. Depois, empurrou com graça os ombros de Maújo para a areia, sentou-se abaixo de sua cintura, cingiu nas mãos o caralho duro e o vestiu com a alça de sua vagina. A penetração distinta aos poucos deu lugar a solavancos. Cabelos colados ao rosto, ao tronco, as pupilas para cima, cobertas pelas pálpebras. Incitada pela liamba, os lábios da vagina embebidos de secreção, bufou com crueldade. Entrou em transe. Depois do gozo, pôs as duas mãos no tórax dele, para se apoiar. Os quadris, antes erguidos em elegante curva por todo o ângulo da vértebra, relaxaram; os braços cederam, caiu de bruços no tórax de Maújo.
Chica Dolores, 29 anos, sincrética. O pai, atendia-o no carinho que ele dera ao nome: Chiquinha. Fora torneiro mecânico em Tracunhaém; titular, conforme dizia, de obrigações com Ogum, protetor de operários metalúrgicos como ele. Teotônio Silva morreu legando à filha a devoção aos orixás. Chica crescera em Tracunhaém, aprendeu a amassar a terracota moldando surubas. Uma estatueta solitária, dava-lhe feição melancólica; em grupo, riam orgíacas. Depressa as vendia. Veio para Olinda, à casa da tia, irmã de Teotônio, e estudou Belas-Artes. Depois das aulas, subia e descia as ladeiras, conjeturando linhas e curvas das igrejas. Moldou o Bonfim, a Misericórdia, São Pedro, o Desterro e Guadalupe. Jurou moldar cada relevo do barroco sacro; com ou sem devotos, com ou sem o sacrifício de subir o passeio com os joelhos no calçamento. Distinguiu as igrejas à noite, de dia, com namorados se esfregando, sentados nos batentes, nas calçadas. Lamentou a ausência de São Jorge, guerreiro, cara-metade de Ogum.

A tia não se opusera quando juntou a arca à otomana para a mudança; confiou no juízo sincrético da sobrinha. Sabia-a insubmissa, por sua linhagem no candomblé; passional e obstinada nos compromissos, amarga e triste quando ficava num só lugar. Não conhecia Maújo; pediu auxílio, daí, ao patrono da sobrinha para não incorporá-la como Ogum violento, com parentesco com o exu irascível. “Não chame a divindade em vão. Você mesma pode ser a vítima.” Ela ria, confiando no que ouvira de Teotônio Silva.

Chica não abandonou as surubas; amassava a terracota com mãos lúbricas, paciência sensual. Usava estiletes, lâminas, paletas de jenipapeiro. As estatuetas curvadas, arqueadas, redondas, torciam-se nas pernas, nas coxas, ventres, bustos e cabeças. Bonecos dissolutos ao lado dos traços severos da Igreja de São Pedro Apóstolo. A quitanda de Chica, registro 1421 na prefeitura, enchia-se de turistas. Ela manteve a oficina nos fundos da casa da tia; às vezes trabalhava à noite. Quando lembrava que Maújo, não a encontrando na pousada, de volta do trabalho, viria apanhá-la, descia a Ladeira de São Francisco rumo à praia, evitando que ele subisse. O madapolão branco, transparente, recamado de nagôs com colares e pulseiras, a essência de patchuli sob as tranças soltas, era ela, Chica, o cenário vivo. Abraçava-o, beijava-o com travo de hortelã-miúda na boca. O repouso vinha em seguida à puxação do fumo, nas pedras, entre a rebentação da maré alta.

– Você me assusta, Chica. Tem muita vida e eu me reservo. Não sei até que ponto terei força para lhe manter junto de mim.

– Não deve ter medo. Sua calma me deixa relaxada. Não tenho medo de seu silêncio. Tenho medo de minhas energias e ao mesmo tempo satisfação. Completo quem eu amo, com elas.

– De onde você tira tanta força para encarar a rotina? Não reclama de nada? Não tem queixas?

– Sei que nunca serei punida por nada. Acredito na morte, no renascimento. Não gosto da inatividade, é tediosa e amarga. Eu não saberia viver na quietação de uma crença pequena, com reza miúda.

– Babatundê?

– Sim, todo mundo um dia volta. Mesmo depois de emadeirado e enterrado em chão de pedra. Tenho pena, somente, de deixar e não reencontrar a quem dei amor. Mas me conformo quando sei que vou voltar com a mesma coragem para repetir tudo.

– Não devia ser uma só. Devia ser um exército. Gente como você, em quantidade, daria fim aos bruxos do mal.

– Pomba-giras?

– Sim… Digamos assim. São pomba-giras reais, elegantes, de terno e gravata. Vivem do trabalho de operários como seu pai, que era torneiro. Cumprimentam e humilham, batem e às vezes matam. Têm ajuda da polícia, dos milicos.

A costa de Olinda não tem cobiça de devassar o continente; tem pudor de moça impúbere, de rapaz de buço. O bulício das ondas não decorre de índole má, vem do paralelepípedo invasor. Ainda assim, o enxurro das águas serve de trilha sonora à prosa de tapioqueiros nos Milagres. Não se faz ouvir na Sé, espera paciente que o bêbado zombeteiro cambaleie nas amuradas para bordejar, sedento, sob os salpicos de suas ondas. Na Praça do Jacaré não tem palmeira-real saudando com as palhas a rascância no dique pedregoso. Há uma bulha de desocupados que não se inquieta com o conluio do vento com as águas. Quem se debruça nos muros de alicerce oco, dá-se conta do motim iminente do oceano espremido.

Maújo, em vez de buço, deixara crescer um bigode de fios grossos, furantes. Tem um sonho ou pensa que seus sonhos são apenas um em sua cabeça zonza de sonhos. Coexiste triste com a indocilidade das águas, por morar num aposento embicado na praia. Não culpa o bêbado zombeteiro por ter deixado a garrafa de rum, vazia, na areia; ressente-se do lucroso capitão de indústria. E intriga-se com o desdém dos desocupados. Espera, com medo, a vindita do oceano.

Chica tem o sono oco de sonhos; dorme com instinto de cabrita se não satisfizer a grita do sexo, seu e do amante. O enxame de sardas no rosto infunde-lhe um terror travesso na face. É uma vestal emersa das águas, em descanso na cama de Maújo; deita-se e dorme numa única posição, com o ventre para cima.

Após a conversa, Maújo deitou-se confiando na sincera imperícia de Chica em apoio aos seus sonhos, aos queixumes das águas. Dormiu diluindo-se no morno sono de Chica, tão iogue quanto ela. Pensou que a maré, na vazante, renunciara aos intentos genocidas. Do alto, a luz do farol mostrou o recuo das águas, espreitando talvez o afogamento do bêbado zombeteiro, a devastação do Maconhão encravado nas ondas.