Sem categoria

Fantasmas do Natal britânico

Não é só Papai Noel fazendo rô, rô, rô, porre na festa de escritório, Exército da Salvação tocando e cantando hinos, compras desvairadas, pinheiros, enfeites e rabujices caladas por pura força de vontade.

Por Ivan Lessa, colunista da BBC Brasil

O Natal britânico difere ainda dos demais por uma pequena particularidade: Enquanto mesmo nos países tropicais (Brasil, Senegal, Zâmbia) colou o sistema dos "bons pinheiros de Natal", conforme a hoje internacional música, ou hino, natalino e a figura gorduchona bolada pela Coca-Cola, o acima referido Papai Noel, perito em renas e chaminés, aqui além do mais e, que eu saiba, trata-se do único país do mundo, em que ele e o resto do folclore reinam mas juntamente com a história de fantasma, que é tão popular quanto a gemada e as castanhas.

Fantasma faz parte das comemorações.

Não há ano que não passem na TV, ou montem num teatro, umas 250 adaptações da célebre novela de Charles Dickens, A Christmas Carol, que nós chamamos de Um Conto de Natal, se não estou enganado.

Já deve, infelizmente, rondar a pobre criançada um super-espetáculo em versão animada e 3D.
A melhor versão cinematográfica, imbatível mesmo, é com o Alistair Sim, que ninguém aí na platéia sabe quem é ou de quando é. Mais não adianto. Procurem na cinamateca do bairro, invoquem a Lei Roaunet, qualquer um desses tropicalismos esclarecidos que nos impulsionaram para o primeiro time da seleção mundial de países liberais em ascensão progressista.

Fato é que, conforme estabeleci no início desta croniqueta, além do presunto ou do leitãozinho, há também uma contrapartida para os sininhos das renas do bom velhinho do refrigerante: Contar, ler, exibir, montar – e só agora volto à vaca fria – a história de fantasma.

Sim, deve haver uma história de fantasma sobre uma vaca fria espectral, mas essa eu desconheço.

Sei, porque li muito garoto, em edição brasileira, um conto daqueles de meter medo para valer, ao menos num fedelho de seus 12 anos. O título em português era, e é, O Jinrikiquixá Fantasma, The Phantom Rickshaw, de Rudyard Kipling.

Narra a história de um homem perseguido pelo fantasma de uma senhora a cujo amor desprezara e que passa o resto da vida atormentando-o num daqueles triciclos.

Vinha num volume com outras histórias de fantasmas, na qual Kipling, o chamado "poeta do colonialismo", mas craque na arte da narrativa, juntou tudo que fizera no gênero e, com grande sucesso editorial, lançou sob o título do conto que destaquei seguido de "e outros histórias misteriosas (eerie)". Nunca o reli. Tenho medo de ter medo.

Mas a palavra jinriquixá, ou rickshaw em inglês, esse triciclo oriental que equacionamos com o Japão, mas é continental em sua origem, nunca perdeu sua aura assustadora para mim.

Tanto é que há décadas, quando eu ia mais (ou simplesmente ia, para ser sincero) ao centro da cidade, sempre dei com os danados dos rickshaws, aqui fazendo ponto perto dos lugares de atração do West End, da teatro- ou turistolândia.

Não era só o velho pavor do arrepio juvenil. Havia ainda um elemento que me causava transtorno. Um homem pedalando e levando no veículo, se assim se pode chamá-lo, turistas sorridentes armados de celulares textando e fotografando tudo.

Notei um certo desprezo pelos triciclistas por parte também dos motoristas, fossem de táxi ou não.

Um ou outro mais desaforado sempre dava um jeito de chamar o pobre coitado do equivalente, para nós, de "Pangaré", Pantuflas" ou "Jeguinho".

Soube agora que, no meio de tantas dificuldades natalinas em Londres, o prefeito Boris Johnson resolveu dar uma imprensada nos triciclistas. 35 já foram presos, só nos arredores do Soho. Motivo?

Estarem com o veículo (será um jinriquixá um veículo no duro?) em estado lamentável de manutenção, desobedecerem os tricilistas às regras fundamentais do trânsito, a exercerem sua, talvez, humilhante profissão sem os devidos papéis em ordem. Estuda-se agora, não fossem cidadãos britânicos, um código oficial de conduta para os rickshaws.

Tudo bem. Mas eu, no lugar das autoridades, daria uma boa relida no conto de mestre Kipling.
Só para saberem em que estão se metendo.

Fonte: Folha