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Amêndoas glaçadas de marzipã

Olha mais uma vez a mesa pronta para a ceia. Quatro lugares: dois em cada lado. A toalha branca de damasco realça a louça inglesa. Taças de cristal vermelho fazem par com o arranjo de rosas da mesma cor que repousa no cento da mesa em uma floreira de murano. Baixo, do jeito que eu gosto. Não deve interferir na conversa.

Por Lucia Moura (*)

mesa de Natal

Preciso fitar cada um. Ver seus rostos, perceber os trejeitos. Mania antiga esta minha. Lembro de Carlos, o olhar frio, mas o leve tremor no canto da boca denuncia a insegurança.

Toca os talheres. Alisa o guardanapo. Alvo. Perfumado. Destampa uma caixa e retira um pequeno guardanapo de papel. Abre o de tecido e coloca no interior o de papel. Volta à dobradura antiga e o põe no mesmo local. São desagradáveis as manchas de batom. Alicinha gosta dos carmins.

Olha em volta. Está quase na hora. Devem chegar alvoroçados. Ah! As desculpas! Tão engraçado ver Carlos mentindo para encobrir os deslizes de Alicinha. Armênio trará orquídeas ou uma caixa de amêndoas glaçadas de marzipã? Amo os dois. Foi uma pena não chamar Heleninha e Daurio. Quero um ambiente mais íntimo. Tenho quase certeza que Alicinha vai trazer um perfume exótico bem ao gosto dela. Carlos, aquele livro que citei outro dia. Ou foi na semana passada?

Dirige-se ao interior do cômodo. Retorna minutos depois trazendo uma sineta que pousa sobre a mesa. Da gaveta, retira um incenso. Acende. Segue com os olhos a fumaça perfumada que vagueia pela saleta. Chega próximo à janela. Senta-se.

A mesma cena. Sempre espreitando de sua janela as do prédio vizinho. Agora nem disfarça. Simplesmente olha alheia a tudo. Pega o livro que repousa na mesinha ao lado da cadeira. Folheia-o. Abre mais a janela. O vento toca seu rosto numa massagem lenta. Passa os dedos entre os fios levemente encaracolados do cabelo ainda úmido. Amassa-os para dar jeito.

Levanta-se e vai até ao aparador. Ajeita o arranjo de flores tropicais. Como são bonitas e intrigantes. Lembram rostos macilentos de cadáveres. Antonieta nunca deixou faltar em seu jardim. Marina também. Pega uma das caixas da coleção. Esta eu trouxe daquela viagem ao México. Não, Portugal. Tenho certeza.

Apura o ouvido, andando rápido segue em direção à porta de entrada. Volta à janela. Pensei que era a campainha. Este silêncio me dói os nervos – me confunde. Aperta uma tecla do aparelho de som. A velha dama está cada vez mais concentrada. Olha o relógio de pulso. Inquieta verifica o espaço povoado de lembranças. Quase meia noite. Vou acender mais um incenso. Por que demoram tanto? Leva um lencinho de cambraia até o rosto. Repete a cena e desta vez mais próximo ao olho. Consulta o relógio da parede. Pega, no balde de prata, a garrafa de champanhe. Retira a rolha cuidadosamente. O líquido gelado e espumante escorre por entre seus dedos. Sou muito desajeitada. Nunca aprendi a abrir champanhe, Joca sempre estava atento. Enche uma taça. Seus olhos buscam as janelas do prédio vizinho. Tudo igual, apenas numa delas uma discreta penumbra.

A campainha toca. Toca o carrilhão. Tudo ao mesmo tempo. Meia noite. Vira-se. O olhar busca a janela do outro lado. Está escuro, a cortina esvoaça. Abre a porta. Ergue a taça.

– Feliz Natal!

(*) A escritora Lucia Moura é de Recife (PE). Prosa Poesia e Arte agradece a sugestão de Clóvis Campêlo