Privatização do espaço público ameaça o carnaval de Salvador

O carnaval de Salvador começou nesta quinta-feira (16/2) e deve reunir mais de um milhão de pessoas até a manhã da quarta-feira de cinzas (22/2), quando os últimos trios promovem um arrastão no circuito da orla. Antes apontada por muitos como uma das mais democráticas do mundo, a festa vem sofrendo com a profissionalização da folia e a explosão do número de blocos e camarotes, que acabam restringindo ainda mais o pouco espaço para o folião que não paga para acompanhar os trios, a chamada pipoca.

O crescimento do número de participantes sem o relativo aumento do espaço físico para a festa é uma das explicações mais utilizadas para justificar o fenômeno, que afasta um número cada vez maior de soteropolitanos do carnaval, tornando-o um evento para turistas. São cerca de 500 milhões neste período, segundo a Secretaria Estadual de Turismo.

“Estatísticas mostram que 70% da população de Salvador não vai ao carnaval. Ai você encontra motivos religiosos, os idosos, que não possuem mais o vigor físico exigido pelo carnaval, mas, principalmente, eu acho que esta é a questão política fundamental, porque brincar o carnaval nos circuitos oficiais é muito caro para a maioria da população. Para cerca de um 1,5 milhão de pessoas que vive entre a Paralela e a BR 324, os moradores de bairros como Cajazeiras, Valéria e tantos outros, é muito caro vim para o carnaval no centro da cidade. No máximo uma vez, porque tem transporte, lugar onde ficar, tem que trazer dinheiro para tomar um lanche e isso pesa”, afirmou o professor e historiador Ubiratam Castro.

Para ele, o grande desafio é criar as condições para que toda a população possa ver as grandes atrações do carnaval, como Ivete Sangalo, Daniela Mercury e Carlinhos Brown. “É preciso ter espaço, mas não necessariamente este espaço dos atuais circuitos. É preciso criar um carnaval com a mesma qualidade artística em Cajazeiras, em Valéria, em Paripe, em Coutos. Tudo isso, levando em conta que o carnaval é uma coisa para o povo, então é o Estado que tem que vim pela frente, pagando e abrindo o caminho”, defende.

O historiador acredita que não há como multiplicar o espaço nos circuitos Osmar, Dodô e Batatinha – Pelourinho. “Não é só a questão do espaço, mas do carnaval ser afirmado como universal. E aí você vê a contradição. A única forma do carnaval ser afirmado como universal é pela TV. Então, o carnaval se tornou um espetáculo, tudo roda em função da TV. Esta é uma contradição, principalmente para a Prefeitura, que é dona do carnaval. É preciso buscar formas de multiplicar este carnaval e torná-lo acessível nos bairros e em diversos outros espaços para que o cara que mora nas Cajazeiras não precise gastar dinheiro para vim no centro da cidade brincar o carnaval “, argumenta.

Privatização dos espaços

Já o urbanista e professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, Marcos Rodrigues, tem uma visão diferente da questão. Para ele, o que tem afastado os soteropolitanos do carnaval é a falta de espaço para aproveitar a festa sem precisar comprar abadá ou ingresso para camarotes. “O que nós percebemos é a privatização crescente do espaço público, principalmente pelos camarotes. O espaço do trio elétrico já era de certa forma a privatização da área pública, das vias onde as pessoas que não estão no bloco saem para se divertir, mas, sobretudo, do tamanho exponencial que os camarotes vem tomando”, disse.

“A gente tem um modelo de festa que está privilegiando grandes estrelas, os camarotes que não estão exatamente no clima do carnaval, mas sim são verdadeiras casas noturnas ou boates montadas, completamente alheias à folia como um todo. É evidente que é possível privilegiar outros modelos e privilegiar outras partes da cidade. O Rio Vermelho, por exemplo, poderia ter um carnaval à parte, mais tranquilo, sem os trios, como já existe na área do Centro Histórico”, ressaltou Rodrigues.

O urbanista, porém, não acredita que a realização do carnaval nos bairros populares seja a melhor solução para democratizar a festa. “Eu acho que o carnaval nos bairros seria uma forma de tirar os mais pobres do centro da cidade. As pessoas querem ir para o centro e tem este direito. O carnaval nos bairros deve existir como um paliativo para as crianças, as pessoas idosas. Acho válido, mas isso não é solução. A solução seria transformar os espaços públicos existentes, em espaços mais democráticos. Os camarotes com esta estrutura que tem hoje, estão na contramão disso. Acho que o caminho é redemocratizar as áreas públicas existentes e não confinar as pessoas nos seus bairros”, concluiu Marcos Rodrigues.

De Salvador,
Eliane Costa.