Carlos Machado: a poesia de Hélio Pellegrino
O mineiro Hélio Pellegrino (1924-1988) é amplamente conhecido por suas atividades como psicanalista, jornalista, escritor e ativista político. E mais ainda pelo fato de ter sido um dos membros do grupo de amigos-escritores conhecido como Os Quatro Mineiros, do qual faziam parte Paulo Mendes Campos (1922-1991), Otto Lara Resende (1922-1992) e Fernando Sabino (1923-2004).
Por Carlos Machado*, na revista eletrônica Alguma Poesia
Publicado 24/02/2012 16:17
Também se sabia que Pellegrino era poeta. Mas poucos conhecem algum poema escrito por ele. Na verdade, não era mesmo para conhecer, pois seus poemas não estavam disponíveis nas livrarias. Essa lacuna só foi corrigida cinco anos depois de sua morte. Em 1993, o jornalista e escritor mineiro Humberto Werneck organizou o volume Minérios Domados, que reúne o fundamental da obra poética do psicanalista.
Conforme Werneck relata na apresentação do livro, Pellegrino foi um escritor de “abstinência editorial” quase absoluta. Publicou ensaios de psicanálise, mas no departamento lírico ficou em dois poemas, ambos divulgados em 1944, quando ainda residia em Belo Horizonte, sua cidade natal.
Em 1980, gravou doze poemas no elepê-recital Os 4 Mineiros, do qual também participaram os três amigos de toda a vida. Depois de sua morte, o jornal Letras & Artes deu a público 27 poemas curtos de Pellegrino. E é só.
Werneck debruçou-se sobre os papéis deixados pelo escritor e reuniu num volume sua obra poética. O livro está dividido em duas partes: poemas datados, com obras de 1942 a 1987, e poemas sem data.
Embora esse livro já estivesse disponível desde os anos 90, confesso que não sabia da existência dele. O contista baiano Valdomiro Santana é que me chamou a atenção para ele. Além de me falar sobre Minérios Domados, ele fez a seleção dos poemas que você lê neste boletim. À lista dele, acrescentei apenas um poema, “Tempo Romano”.
História
Hélio Pellegrino começou a escrever poemas aos 15 anos. Em 1940, conheceu em Belo Horizonte os três amigos com quem formaria o quarteto famoso. Em 1942, encontrou em São Paulo o poeta modernista Mário de Andrade, com quem manteria uma troca de correspondência até a morte deste, em fevereiro de 1945.
Nessa mesma época, escreve em jornais, torna-se um dos fundadores da UDN – União Democrática Nacional e até concorre, por esse partido, a uma vaga de deputado estadual. Em 1946, desliga-se da UDN e funda a Esquerda Democrática, ligada ao Partido Comunista.
Formado em medicina, Pellegrino começa a trabalhar com psiquiatria em 1947. Cinco anos depois, já casado e com filhos, muda-se para o Rio de Janeiro. Em 1969, foi preso por dois meses pela ditadura militar, acusado de subversão. Sempre ativo no jornalismo, na psicanálise e na política, Pellegrino tornou-se uma figura de projeção nacional.
Pelos poemas a seguir, vê-se que Hélio Pellegrino é um poeta que sai a captar sensações nas coisas que vê pelo caminho. Atento para detalhes, ele “fotografa” liricamente essas sensações. “Oh! A resignação das coisas paradas, / grávidas de silêncio”, escreve em “Momento”. É um lirismo que se acerca das coisas triviais e é capaz de perceber “a prece das esquadrias de alumínio ionizado”.
Essa mesma sensibilidade aparece em “Tempo Romano”, texto em que o poeta, diante de monumentos na cidade eterna, medita sobre a efemeridade das coisas humanas, mesmo aquelas que consideramos grandiosas, como os Césares e os impérios.
Entre os poemas sem data, destaca-se “Quadrilátero Ferrífero”, um retrato lírico da região mineira dedicada à produção de minério de ferro. Hoje ferrífera, no passado aurífera. Numa comparação ousada, o poeta diz que a hematita é a “uva das Minas Gerais”. Por fim, cito ainda a pequena joia que é “O Galo”.
MOMENTO
Oh! A resignação das coisas paradas,
grávidas de silêncio, reverentes,
em sua geometria sem jactância!
A placidez das ruas acolchoadas
contra a dura cintilação do dia;
o recato das árvores, a prece
das esquadrias de alumínio ionizado
na fachada do edifício em frente!
Todas as coisas — em clausura — cumprem votos,
enquanto a vã filosofia do século
pensa que move o mundo.
Rio, 9/9/87
ALGUMA COISA
Para Guilhermino César
Alguma coisa resta: um gesto
nos tendões da mão engelhada.
Uma efusão inacabada
na ferrugem da pele-resto.
Alguma coisa que é da raça
dos minerais, insubornável,
além do amargo e do caroável,
do que perdura — e do que passa.
Alguma coisa inscrita: um grito
no fulgor do dedo anular.
Um puro incêndio sem queimar
— como um segredo afinal dito.
Porto Alegre, 8/11/86
POEMA RASGADO
Ó borboletas de papel
janelas da insônia
turbilhonando a noite
Rio, 27/2/80
TEMPO ROMANO
Nesta espádua de pedra
pousam pássaros,
deslembrados de sonhos,
tempos, césares:
— eles, sim, são eternos.
Roma, 27/12/80
MOMENTO NO METRÔ
Se nos olhássemos
mais tempo,
levaríamos conosco
o duro, o instante,
o implacável diamante
que nos separou.
Paris, 15/12/80
VAN GOGH EM AMSTERDÃ
Por debaixo de tudo,
diques, dunas, frontões;
Por debaixo de tudo,
nobres pedras, canais
onde remam cisnes.
Por debaixo do mundo
lavra um incêndio.
Amsterdã, 1º/1/81
QUADRILÁTERO FERRÍFERO
Em tuas colinas rasas
não há vinhedos nem olivais.
Há — púrpura difícil — a hematita,
uva das Minas Gerais.
Uva sáfara, mineral,
fermentando uma pinga de poeira
cujo álcool — lâmina de rocha e cal —
torna triste a embriaguez mineira.
Embriaguez vertical, contida,
cujas cores explodem dentro
do peito: ocre violento, lacre
e prata, sol — e lua ferida.
A CEGUEIRA DE ÉDIPO
Caminha errante o velho rei da terra,
sangrando a cada passo o seu desterro.
Pesa-lhe luz demais, ausência de erro
e de noite — montanha que o soterra.
Cego de sua verdade, desenterra
do peito transfixado não o ferro
que o punge por inteiro, nem o berro
que lhe sobe das entranhas, enquanto erra.
Com sua garra terrosa de mendigo,
busca arrancar da carne não a morte
que o rodeia na treva, vinho forte
desde sempre provado. O desabrigo
que o atormenta é outro: sol candente
que vara a sua cegueira — e o faz vidente.
HERÁCLITO, O OBSCURO
A pedra se move menos que a planta.
A planta se move menos que o réptil, movendo-se sobre a pedra.
O réptil se move menos que o leopardo, na espessura da floresta.
O leopardo se move menos que o homem, faminto de espaço.
Todo ser, ao mover-se, exprime o seu desassossego: arco tendido
[ na direção do vir a ser.
A pedra tem mais sossego que a planta.
A planta tem mais repouso que o réptil.
O réptil é mais sonolento que o leopardo.
O homem, este é pura insônia — trabalho futuro, voo e flecha.
O GALO
Canto forrado em
carne, e sob as penas,
este carvão que
espreita. E salta em
arco sobre os pulmões
do dia. E bifurca a
manhã com a córnea de
seu bico.
*Carlos Machado é poeta e jornalista
Fonte: Alguma Poesia