Claire Tomalin: Uma carta de aniversário para Dickens
Prezado Sr. Dickens,
Publicado 24/02/2012 18:14
Feliz 200º aniversário! Você não era muito simpático a celebrações de datas como essa, mesmo assim foi a Stratford-upon-Avon em abril de1864, com Robert Browning, Wilkie Collins e John Forster para celebrar os 300 anos de Shakespeare's, "em paz e silenciosamente". E em janeiro de 1849, celebrou o bicentenário da execução de Carlos I com o amigo, presumo, Walter Savage Landor. Ao fazê-lo, deixou uma clara mensagem de como reverenciava os escritos de Shakespeare – "ele foi um grande companheiro!" – e como desprezava de coração os maus governos.
Nesse momento, em sua homenagem, o mundo está lendo e relendo seus textos literários e jornalísticos. Entre eles, a sua história, Um conto de Natal, apontada como uma das mais eloqüentes mensagens contra a avareza dos ricos, os “pobres de espírito” que perpetuam as injustiças e desigualdades sociais no mundo.
E não só esse belo conto, mas seus herois e vilões estão sendo todos revisitados, como Pecksniff, Squeers, Quilp, Murdstone e Headstone. Também estão todos revendo suas mulheres, as mais fracas e as fortes, como Betsey Trotwood, Peggotty -, além das mais famosas, com versão em quadrinhos: sra. Gamp, sra Todgers, Finching Flora.
Em sua obra, você celebra também a força de resistência dos deficientes, como Jenny Wren, que supera a dor física para se tornar uma costureira de bonecas; a desfigurada Phil Squod, que não consegue andar em linha reta e no entanto é batalhadora, leal e gentil; e a senhorita Flite, cuja loucura lhe permite o vislumbre da verdade.
Para além de toda a ficção, adoramos o modo como você revela a sua “Londres” diante de nossos olhos: ruas, rio, pontes, lojas, mercados, prisões. E estamos lendo suas cartas, a melhor expressão do seu espírito combativo de repórter, movido por elevadas aspirações, entusiasmo, generosidade e, é preciso enfatizar, indignação nos tempos sombrios.
Suas novelas e cartas nos dão um panorama do século 19 na Inglaterra. Mas o que você criaria diante do século 21, o mundo em 2012?
Em Londres, você perceberia rapidamente que a abaulada cúpula escura da Catedral de São Paulo, como você descreveu, não é mais preta. O nevoeiro, a lama e os cortiços imundos se foram. A ausência de casas de correção e o pequeno número de crianças de rua lhe agradariam, além da falta de prostituição flagrante no Haymarket.
Por outro lado, persiste o abismo entre ricos e pobres, os primeiros, sempre esbanjando dinheiro e poder; e os segundos, sobrevivendo das sobras de supermercados e da caridade de instituições filantrópicas enquanto enfrentam o medo de perderem os empregos.
E como você sempre foi obsessivamente interessado pelo mundo das prisões em toda a sua vida, você se chocaria com o crescimento de prisões e o elevado número de prisioneiros nas celas.
Uma lida rápida dos jornais revelaria a você que o seu personagem, Sr. Merdle, banqueiro de má índole, possui cada vez mais seguidores.
Mas a maior mudança ocorreu no plano social, o Reino Unido é agora uma sociedade multilíngüe e multicultural. O cenário que poderia lhe parecer difícil de compreender, por outro lado, você logo sossegaria os ânimos com a certeza de ter em mãos um rico material para novos escritos, conteúdo que já está sendo brilhantemente trabalhado por seus conterrâneos.
Quanto aos avanços tecnológicos, certamente você tomaria nota e investigaria todos. Com um suspiro, você tomaria conhecimento do sistema de controle de natalidade, que não te permitiria ter mais do que três crianças, apesar de desejar mais. Voar seria outra descoberta, que lhe permitiria viajar para a Austrália, lugar que talvez você gostasse de conhecer, outro grande tema para sua literatura.
Radio, televisão, cinema lhe seduziriam rapidamente. Você poderia se tornar um astro pop no semanário da próxima segunda ou no noticiário televisivo diário. Produtores de filmes para o cinema estariam ligando no seu celular, mas você se esquivaria, porque sempre soube se proteger do assédio de admiradores. Você seria capaz de trocar sua famosa “pena e tinta” por um teclado de computador? Eu suponho que sim.
Você ficaria agradavelmente surpreso ao saber que todos os seus livros estão à venda em livrarias e também na internet. Logo perceberia que algumas bibliotecas sobrevivem, mas não sem esforço. Você sempre as defendeu e não deixaria de fazê-lo agora.
Você não imagina como gostaríamos de poder encontrá-lo no seu velho escritório da rua Wellington – a construção ainda está de pé– e levá-lo para um almoço, com bom vinho e até mesmo charutos, em um alegre restaurante, para o qual você poderia chamar alguns de seus amigos, reunindo-se outra vez com eles como tantas vezes no seu aniversário: John Forster, seu biógrafo, os artistas Maclise, Clarkson Stanfield e John Leech, o grande ator Macready e o ator cômico John Pritt Harley, o Conde D'Orsay, Wilkie Collins, além de seu leal agente, George Dolby.
As mulheres poderiam comparecer em dias separados: senhorita Coutts, senhora Gaskell, a invisível Nelly. E poderíamos levar ao seu encontro Leon Tolstoi, que nunca lhe conheceu pessoalmente, mas declarou que você era o maior romancista do século 19. Também manteve um retrato seu na parede de sua casa
Depois de tudo isso, você poderia dar uma escapada (de helicóptero?) até o Gad's Hill e acomodar-se lá com outro charuto contemplando o conservatório que você construiu, especialmente os jardins com gerânios vermelhos, dos quais sempre gostou tanto.
Sr. Dickens, você ainda é, e será sempre, um gênio inimitável. Muitos anos de vida!
*Claire Tomalin é autora de Charles Dickens: A Life, publicado pela Viking.
Traduzido por Christiane Marcondes a partir de texto publicado no The Guardian