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O Hip-Hop está morto!

Este é o título do novo livro de Toni C., artista multimídia que começou como DJ já aos nove anos. Hoje é conhecido como uma das 50 pessoas mais influentes da cultura brasileira,título que conquistou com os prêmios Tuxáua e Escola Viva, do Ministério da Cultura.

Na nova obra, que será lançada no dia 01 de março, Toni C., ao contrário do que se possa imaginar, não mata, mas dá vida — carne, osso, atitude e coração — ao Hip-Hop (Hu-mano), ou Hian Homero Pereira, conforme a certidão de batismo. O cara é brasileiro, mas na real não tem certeza de onde nasceu. Entendeu? 

É a história de um músico famoso e também do Hip-Hop no Brasil. O texto traz elementos adicionais até para os mais aficcionados. Mas também é um excelente guia introdutório para quem quer descobrir mais esta cultura.

Quer embarcar nessa? Pega esse táxi que tá passando aí, tá na mão, e siga o Hip-Hop até o fim.

Capítulo 1 — BANDEIRADA

Os raios de sol não encontram nenhum obstáculo para cair com força do céu sem nuvens desta tarde. O vento levanta poeira da rua de terra batida.

Samara confere na agenda o endereço do estúdio. O número 39 é o mesmo escrito em carvão na parede da casa simples da Rua 10. Desconfia de ter levado um trote, ainda assim, sem jeito resolve bater palmas diante do portão na- quele bairro tão diferente do seu.

Não demorou muito para que ele aparecesse. Com a cara amarrada e tranquilo, abre o portão e estende a mão para a jovem que foi logo se adiantando:

– Oi, eu sou a Samara, estudante de belas artes da Universidade do Estado. Nem acredito que é você mesmo aqui na minha frente! Obrigada por aceitar me receber…

– Prazer, eu sou o Hip-Hop.

– Eu sei, eu sei. Tenho todos os seus discos, sou muito sua fã.

– Firmeza, vamos entrar? Dentro da casa funciona o estúdio da quebrada. Poucos, mas possantes aparelhos, todos muito bem utilizados, o aquário de vidro grosso separa quem grava a voz dos latidos dos cachorros na rua.

Os músicos que preparam a batida para um novo Rap estão devidamente posicionados. DJ Crispin nas pick-ups, Raffa nos teclados e samplers, o B. boy Pulguinha, marca a coreografia enquanto Bonga grafita o cenário do palco nos fundos daquele casebre. Eles interrompem o som:

– Caramba, Hip-Hop, você disse que teria visita, mas não falou que seria uma top model que viria te entrevistar.

Se atreve DJ Crispin.

– Que deselegância com a dama, rapaz! Aí, gente, essa aqui é a Samara, estuda artes e quer conhecer melhor nossa produção. Ow Raffa, esse som é estouro! Depois vamos acrescentar mais uns agudos e uns repiques nas viradas. Vai ficar monstro!

– Firmeza, Hip-Hop, esse Rap vai fazer barulho! Amanhã mesmo a gente fecha isso.

– Nossa, isso é tão interessante! – Samara está extasiada – Vir aqui, conhecer você, seu grupo, o estúdio onde produzem. Da onde tira inspiração para produzir letras tão complexas?

O Hip-Hop faz uma ligação e chama um parceiro. Despede-se de todos e, de volta ao portão, logo aparece um táxi.

Ele abre a porta para Samara, dá a volta no carro e cumprimenta o taxista antes de entrar:

– E aí, Jairão, vamos fazer um pião pela quebrada?

– Ô, demorou negô!

Antes do carro começar a rodar, Samara tira um cader-
ninho da bolsa e comenta:

-Você não faz ideia do quanto tenho me empenhado pra conseguir te encontrar. Por que o Hip-Hop é assim, tão difícil?

— Você me conheceu agora, já achou difícil?

Após um átimo interminável de silêncio Hip-Hop esbraveja

– Jairo, o que tá marcando aí?

— O quê?

— O taxímetro, tá marcando o quê?

— Esse valor?

— É! Este valor que tá marcando aí? Que valor é esse, nem começamos a rodar, meu?

–Todo táxi cobra a bandeirada, tio. É uma taxa de imposto que é definido pela prefeitura com as cooperativas de táxi.

— Entendeu, Samara? – Pergunta o Hip-Hop sempre bastante conciso.

— Não. Do que você está falando?

— Explica pra ela Jairão.

Jairo coloca os óculos escuros, liga o som do carro e sai com o táxi bem devagar, olhando pelo retrovisor.

— Seguinte, mina: você perguntou pro Hip-Hop por que ele é tão difícil. Acho que ele tá querendo dizer que é igual a essa bandeirada do táxi. É o preço que a gente paga antes de andar, tá ligada? Quer conhecer o Hip-Hop? Firmeza ele tá aí ó! Mas é necessário disposição.

Samara protesta:

— Ah, mas isso é preconceito.

— Pode chamar como você quiser, mina. Mas, na real, é tipo um filtro natural que já elimina vários pipoca. Vocês não têm também suas filtragens? O preço da balada, a taxa de consumação, a portaria do condomínio, o vestibular…

Ela fica intrigada. Hip-Hop entra na conversa:

— Deixa eu te apresentar o Jairo, ele além de taxista é rapper e tem um grupo chamado Periafricania.

— Que bacana, prazer em conhecê-lo, Jairo. Sobre o filtro, eu não concordo muito não – ameniza Samara – mas acho que entendi o que vocês querem me dizer. Pelo visto já paguei alguma taxa, agora quero saber mais de vocês. Posso fazer algumas perguntas?

— Vai em frente. E a universitária não fez cerimônias: 

— Quem é o Hip-Hop?

— Sou um rapaz comum, tenho mais de 30 anos, sou brasileiro.

— Brasileiro? – Ela interrompe – Sempre achei que o Hip-Hop fosse americano. Qual é seu nome?

— Meu nome é Hian Homero Pereira. Mas pelo meu nome tupiniquim nem meus pais me conhecem. Só pelas iniciais de meu nome: Hip-Hop.

— Você disse que nasceu no Brasil, Hian?

— Existe muita controvérsia sobre onde e como nasci. Tem quem jura que assistiu ao parto. Sabe até o dia e hora. Mas a maior cultura juvenil globalizada do planeta não nasceu num único lugar, muito menos num só momento.

— Você quer dizer que…

— É verdade que tenho muita influência dos Estados Unidos. Só que também muito de mim veio da Jamaica, da África, da cultura latina, oriental…

— Então por que você se diz brasileiro?

— Quando vim pra cá ainda pequeno, ganhei um jeito próprio, um sotaque diferente, torço e sofro pela seleção brasileira em dia de jogo, me transformei. Hoje, aqui, eu sou o Hip-Hop verde-amarelo, sou o Hip-Hop brasileiro.

Samara não para de tomar notas em seu caderno e suas dúvidas só aumentam.

-Mas quem é o Hip-Hop brasileiro?

— É um cara que, antes de escrever o primeiro Rap, já era gestado no repente e a embolada com pandeiro. Antes de se atrever a entrar na primeira roda de break já era chaco- alhado nas rodas de umbigada, da congada, do jongo. Antes do primeiro footwork já ia me formando no passista de frevo, na dança chula gaúcha. Antes do primeiro traço com spray já estava misturado na tinta das pichações políticas contra a ditadura, na forma rústica da xilogravura nas capas dos livros de literatura de Cordel…

— Então, Hip-Hop não é só uma música?

— A música chamamos de Rap. Eu sou mais que a mú-sica, sou formado pelo DJ e MC que são os responsáveis pelo Rap, também pelo Graffiteiro e o B. boy que se manifestam através das artes plásticas e da expressão corporal.

— Como você, que é uma pessoa, consegue ser quatro ao mesmo tempo?

— Você é estudante não é, Samara?

— Sou sim, me formo este ano.

— Mas pra sua mãe você é a filha e pra sua vó você é a neta, não é mesmo?

— É verdade, e também sou para minhas tias a sobrinha comportada, para meu irmão sou a irmã mala, para meus sobrinhos sou a tia querida…

— Se ligou? Nós podemos ser muitas coisas. Eu sou a manifestação da cultura de rua, representado por estes quatros malucos aí.

— É como os quatros elementos básicos na natureza? O ar, fogo, terra e água?

— É exatamente isso. Esse som é louco, aumenta aí, Jairão.

“Breaker’s, Graffiteiros, DJ’s e MC’s somos todos das ruas e estamos aqui” (Thaíde & DJ Hum)

— Está vendo aquilo ali? – pergunta Hip-Hop a Samara – olha só quantas famílias pegando as sobras da feira. Você pediu pra eu mostrar da onde tiramos inspiração. É disso. O que não presta mais pra uns é o que alimenta outros. Assim que criamos arte, com sobras.

A jovem tomou um tempo para anotar tudo e de mais tem- po precisará para conseguir assimilar aquela realidade tão dura.

Enquanto ela escreve, o Rap voa para fora do táxi de Jairo.

A energia atômica mata e cura câncer. A mão que derrama sangue pode escrever romance” (Facção Central)

Ela olha para o relógio dourado em seu pulso e toma um susto. Se dá conta das muitas horas que passaram conversando.

— Preciso ir agora.

Avisa com a promessa de voltar para se encontrar com o Hip-Hop na próxima semana.