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Tiro pela culatra

Por Fernando Soares Campos (*)

O doutor Givanildo abriu o exemplar de "Tiro pela culatra", uma coletânea de contos de diversos autores. Abriu numa página qualquer. Mas aquela não era qualquer página, era exatamente a página do conto que emprestara o título à obra. Leu a epígrafe: "Comme on fait son lit, on se couche".

O telefone tocou. Atendeu. Era o Lúcio. Cumprimentou-o com um "oi", sem disfarçar seu enfado. De súbito, olhos arregalados, levantou-se. Tudo indicava que o Lúcio estava lhe passando uma informação bombástica.

A mulher entrou na sala e estranhou o comportamento do marido ao telefone. Ele parecia eufórico, caminhava em círculo e repetia a pequenos intervalos: "Não! Não! Nããão…!". Ela fez sinais: acenou, piscou, sussurrou: "Quem é?" "O que está acontecendo?" Ele apenas repetia: "Não! Não! Nããão…!" A mulher impacientou-se, bateu palmas para chamar sua atenção. Tentou umas batidinhas com o pé. Nada, quer dizer, "Não!", era só o que ele dizia ao seu interlocutor.

A mulher desistiu, resolveu esperar sentada. Ele mudou sua monossilábica comunicação para "Sim! Sim! Siiimmm…!" Impaciente, ela levantou-se bruscamente e perguntou: "Afinal, é sim ou não?!" Ele colocou o indicador entre os lábios e fez "psiu!". Ela já estava disposta a lhe tomar o telefone e perguntar ao outro o que estava acontecendo. Ele agradeceu pelas informações e despediu-se.

— E agora dá pra você me explicar o que está acontecendo?! – quis saber ela.

— Você não vai acreditar!

— Vai logo, desembucha, homem! Que aconteceu de tão grave?!

— Grave?! Ah! sim, grave sim, mas não pra nós. Eles que fiquem com a gravidade da questão. A nós só resta comemorar mais um gol de placa.

— Para com isso, homem! Conta logo essa história, senão eu tenho um troço!

— Então, sente-se pra não cair de costas.

A mulher sentou-se. Ele permanecia com o livro na mão, falava gesticulando, entusiasmado:

— O Jonas confessou!

— Jonas?!

— Sim, o Jonas!

— Quem é o Jonas?!

— O quê?! Você não sabe quem é o Jonas?!

— O único Jonas que conheço não seria capaz de confessar nada.

— Mas é esse mesmo, o contador, o guarda-livros da C&R.

— Mas o que foi que ele confessou? Claro que não deve ter confessado que é ele quem consegue as notas frias para a venda das cargas roubadas.

— Não, isso não, o cara é bandido, mas não é louco.

— Bom, também não deve ter confessado que foi ele próprio quem matou a primeira mulher e mandou matar a segunda…

— Certamente não. Pode-se acusar o Jonas de tudo, mas ele não é maluco!

— Já sei: confessou que foi o autor intelectual do sequestro do dono daquela rede de supermercado.

— Querida, o depoimento foi na Polícia Federal, e eu já disse que o cara tem juízo!

— Mas o que de tão grave ele confessou?

— O Jonas, em seu depoimento, falou, com todas as letras, que…

O telefone tocou. Ambos olharam para o aparelho trinando insistente. Ela colocou a mão em cima do telefone e disse:

— Você só vai atender quando terminar de me contar o que o Jonas confessou.

— Espere um pouco, meu bem, deve ser o Lúcio. Ele ficou de me retornar informando o que aconteceu com o Jonas. Se vai ficar preso ou responder em liberdade.

Ela cedeu. Num salto, ele pegou o aparelho.

— Alô, Lúcio, e aí, o que aconteceu com o Jonas?!

— Doutor Givanildo?

— Sim…

— É o Jonas.

— Jonas?! Mas você… Bem, o que está acontecendo?!

— O Lúcio não lhe contou?

— Sim, ele me falou que você foi interrogado pela Polícia Federal. Contou que você confessou que a C&R deu dinheiro, por fora, pra campanha daquele vereador esquerdista. Complicou a vida daquele malandro. Mas não me contou os detalhes…

— Nem poderia.

— Como assim?!

— Porque os detalhes virão depois.

— Você vai depor novamente?

— Não, não vou. Estou me referindo às investigações. Os detalhes, sem dúvida, serão revelados durante o processo investigatório..

A mulher se levantou, aproximou-se do marido e encostou o ouvido no fone. Ele não reclamou. Continuou falando:

— Que detalhes?

— Pediram a quebra do sigilo bancário do vereador.

— E daí?

— O problema é o cheque, doutor Givanildo, o cheque. Sei que eles vão chegar ao cheque.

— De que cheque você está falando?

— Bem, doutor Givanildo, o senhor queira me desculpar…

— Desculpar de quê?! Dá pra explicar melhor?!

— Acontece que só agora eu me lembrei.

— Lembrou-se do quê?

— Me lembrei do cheque que o senhor deixou pra pagar o aluguel da sala.

— O que tem uma coisa a ver com a outra?

— Acontece que eu dei aquele cheque para o cara na época da campanha. Era uma emergência, doutor.

— Você está maluco?! Endoidou?! Onde já se viu usar cheque numa transação dessas?! Isso é coisa de louco!

— Desculpe, doutor Givanildo, eu nunca pensei que fosse dar no que deu…

— Pensar?! Pensar?! Você não deve ter essa faculdade, seu estúpido! Você é louco! Louco! Entendeu?! Maluco! Pirado! Doido! Demente! — desligou.

Pasma, a mulher olhava para o marido, apenas acompanhava sua inquieta movimentação pela sala.

Transtornado, o doutor Givanildo arriou-se no sofá como um fardo atirado a um canto. Não sabia o que fazer. Abriu o livro novamente na página do conto "Tiro pela culatra" e releu a epígrafe: " Comme on fait son lit, on se couche".

— Que diabos isso quer dizer?!

(*) Fernando Soares Campos, alagoano de Santana do Ipanema, é um pesquisador, jornalista, escritor que atuou em Recife e reside no Rio de Janeiro. Seu primeiro livro, “Saudades do Apocalipse”, é uma coletânea de contos.