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Correia da Fonseca: A guerra baça

Há cerca de um ano e meio, uma equipe de reportagem norte-americana foi ao Afeganistão para fazer a cobertura de uma pequena operação militar prevista como sendo de alto risco. Dos dois homens que a lideravam, Sebastien Junger e Tim Hetherington, este último morreu em 2011 na Líbia, quando acompanhava em Benghazi, isto é, do lado anti-Kadhafi, naturalmente, a rebelião que ali eclodira.

Por Correia da Fonseca*

De qualquer modo, o que é certo e para aqui mais interessa hoje é que os dois homens regressaram do Afeganistão trazendo uma reportagem de qualidade notável, muito acima do padrão comum dos trabalhos de mera propaganda USA que são de algum modo complementares das intervenções militares norte-americanas nos diversos lugares do mundo.
Intitularam-na “Restrepo”, apelido de um médico militar norte-americano, mas de ascendência colombiana, que integrara a operação e que morrera logo nos seus primeiros dias, desse modo homenageando-lhe a memória.

O mérito do trabalho realizado suscitou um generalizado reconhecimento, valeu uma nomeação para os prêmios da Academia de Hollywood na categoria de “Melhor Documentário” e foi agora transmitido pela RTP2 em horário já muito perto da meia-noite.

“Restrepo” está nos antípodas do modelo habitual das reportagens de guerra filmadas de um dos lados do combate: não tem nada de vibrantemente épico, de hino heróico a evocar o som de clarins e trombetas, com sequências em cavalgada para um desenlace triunfante. Ao longo da reportagem, aquele grupo de homens avança através da solidão num clima de permanente tensão psicológica sempre à espera do tiro que, disparado por um atirador oculto, virá liquidar mais um de entre eles.

Inevitavelmente, quem olha a reportagem lembra-se do Vietname, com os soldados norte-americanos em busca de um inimigo invisível mais implacável, avançando, sobretudo em terreno agreste, de pedra e areia, e não entre as densas arborizações vietnamitas de onde surgiam relâmpagos mortais.

Mas o contraste do cenário não apaga a similitude do essencial: depois da aprendizagem que o Vietname foi não apenas para a intervenção norte-americana mas para o mundo inteiro, percebe-se a partir daquela amostragem verdadeiramente exemplar que ali, como no Sudoeste Asiático, os militares vindos do outro lado do mundo estão lançados numa aventura que não vão poder levar a bom termo. Que aquela é mais uma aposta perdida pela prosápia militarista dos Estados Unidos da América.

Os soldados norte-americanos que vieram de muito longe avançam aparentemente sem um inimigo. Encontram, sim, gente dos locais que vão atravessando: criaturas reduzidas a menos que o mínimo necessário, velhos inofensivos, mulheres assustadas, crianças a quem falta tudo, todos vítimas de uma guerra que lhes foi imposta sem que para ela de algum modo tenham contribuído, criaturas que habitavam um quotidiano pobre mas em paz.
O contraste entre os militares USA, equipados de tal modo que se transformaram em ambulantes máquinas de guerra, e os naturais vestidos de farrapos ou pouco mais, denuncia a brutalidade da agressão.

A missão dos norte-americanos tem como objetivo a penetração num certo Vale de Korengal que se presume ser de grande valor estratégico, mas sempre se sente ao longo da reportagem que o êxito da expedição vai ser irrelevante para o resultado final da intervenção dos Estados Unidos e seus satélites: não serão tanto os afegãos que são invencíveis como o próprio Afeganistão, aquelas montanhas, aquelas rochas, aquela terra de que os habitantes parecem ter emergido como produtos naturais. Algures haverá decerto talibãs, guerrilheiros que espiam os invasores, armas que esperam o momento de disparar, mas o grande e invencível adversário é o país.

É esse sentimento de trágica falência antecipada que percorre a reportagem de uma ponta a outra e se exprime num filme soturno, de certo modo baço como a funesta guerra de que aquele é apenas um momento particular, como que assombrado por ocultas e inelutáveis fatalidades. Com a sabedoria decorrente da memória do Vietname a revisitar cada um dos seus minutos.

*Correia da Fonseca é escritor português.

Fonte: ODiário.info