Mia Couto – A travessia de si mesmo

 Mia Couto fala de seu novo livro e de sua relação com a literatura e com a história de Moçambique.

Agualusa diz que "A confissão da leoa" não é "mais um livro de Mia Couto", mas que é um "livro novo" de Mia Couto, capaz de surpreender os leitores. Você reconhece essa ruptura, este novo momento, no romance?

Isso é uma coisa que foi sendo construída já nos dois livros anteriores ("Venenos de Deus, Remédios do Diabo", de 2008, e "Antes de nascer o mundo", de 2009). Eu queria me separar de alguma coisa que já era uma zona de conforto, onde parecia que eu já havia me instalado. Nesse livro, consegui ir mais além, mas não é algo necessariamente novo.
O escritor moçambicano Mia Couto: "Há esse outro sentido da viagem: é uma travessia das nossas próprias identidades" 

Você escreve seus livros a partir da concepção de um projeto literário – no sentido de pensar arcos, compostos por ideias estéticas determinadas que você deseja experimentar?

Não, não tenho projeto nenhum. (A literatura) é algo que me acontece. Não escrevo com um sentido de missão ou de carreira. Odeio pensar a literatura em termos de carreira. É alguma coisa que acontece e cada vez é sempre a primeira vez para mim.

Em sua obra literária, é notável o uso de pa

lavras inventadas – ou não dicionarizadas. O que determina o emprego desse tipo de palavra?

Acho que a respostas está em sua própria pergunta. Porque as palavras se tornam comuns, porque elas se tornam demasiado funcionárias e funcionais, me parece que é preciso levar essa linguagem do cotidiano para um sentido mais da invenção da nossa própria identidade. O que faço em meus livros é mais um trabalho poético propriamente dito do que alguma coisa do domínio estético, linguístico. O que quero dizer só pode ser dito desta maneira.

Nesse sentido, há algum escritor que tenha lhe servido de referência?

Sim. Luandino Viera, Manoel de Barros, João Guimarães Rosa… tantos outros. De alguma maneira, todos os escritores inventam sua própria linguagem sobre essa linguagem funcional do dia a dia.

Você se apressa sempre em negar o discurso que trata a África como algo homogêneo, monolítico. Você prefere falar em "muitas Áfricas". E quanto a Moçambique? Existem vários "Moçambiques" também?
Sim, sim, também são vários. O curioso de Moçambique é que é um país tão recente que ainda está construindo sua própria imagem unificada. E isso faz-se sempre com alguma violência. Tem que haver uma imagem hegemônica de fato e esquecer as outras. Vemos agora várias versões que ficam disputando neste palco. Moçambique é um país que tem 30 e poucos anos de existência, então essa indefinição é natural.

Sua obra tem quase tanto tempo quanto Moçambique. Sua escrita e a história do país caminham juntas?

Moçambique é como se fosse um filho meu. Sei que isso é uma coisa muito arrogante de minha parte, mas lutei pela independência de Moçambique e sou mais velho que o país. Quando saio de Moçambique para alguma viage

m, fico preocupado por deixá-lo sozinho. É uma relação em que o próprio país está se construindo como ficção. Ele está se inventando.

A literatura antropológica fala em se é transformado pela imersão no campo. O primeiro choque é quando você chega a um lugar e, inevitavelmente, o compara com aquele de onde você veio; o outro, é o do retorno, quando seu lugar de origem não lhe parece mais o mesmo. Suas viagem transformaram Moçambique?

As viagens que faço são viagens, sobretudo, para traçar minhas fronteiras interiores. Se não sairmos de nós próprios, se não nos descentrarmos, não nos visitamos. Há esse outro sentido da viagem: é uma travessia das nossas próprias identidades.

Como você vê a recepção de seu trabalho em país que não são de língua portuguesa?

Funciona razoavelmente (bem). A língua é uma questão importante, mas não é, digamos, a última fronteira. Há coisas que passam por outros idiomas. Somos mais próximos e mais parecidos com os outros do que pensamos.

Fonte: Diário do Nordeste