As mulheres em seu discurso histórico e a independência

Até inícios do século 20, as mulheres que aparecem no discurso histórico são excepcionais por sua beleza, virtudes e heroísmo. Todas as demais não existem em uma história fundada em personagens da elite, batalhas e tratados políticos; uma história que registra e interpreta os diferentes processos e experiências vividas pela humanidade através da visão, pensamentos e manifestações de quem a escreveu.

Por Sara Beatriz Guardia, no Diálogos do Sul

Todos homens em sua maioria de classes e povos dominantes que se construíram segundo o modelo androcêntrico, no centro arquetípico do poder exercido no espaço público e em um tempo cronológico [i], de acordo com a divisão do privado e o público que articula estruturalmente as sociedades hierarquizadas. Por conseguinte o homem aparece como o único capaz de governar e ditar leis, enquanto as mulheres ocupam um lugar secundário, no espaço privado, distantes dos grandes acontecimentos da história [ii].

Então, como é possível conhecer a participação das mulheres no movimento de independência se suas pegadas foram apagadas, ficaram esquecidas, minimizadas? De que maneira abordar esta presença no caso das mulheres indígenas quando a exclusão está na base e na gênesis do sistema de organização social e econômica implantado pelos conquistadores espanhóis a partir do século 16?

Até uma nova história

Quando no século 18 o espaço privado começou a se configurar separado do âmbito de poder político [iii], mudou a história até então focada somente na esfera pública, entendida como espaço das relações de poder político e econômico. O que significou um olhar de homens para os homens. Aqui as marcas das mulheres ficaram esquecidas nos arquivos públicos, invisíveis para a história [iv]. Possibilitaram a mudança, a ilustração com a razão e a educação como suas características fundamentais, e o liberalismo que trouxe a igualdade ainda que sem concretizar sua proposta durante a Revolução Francesa ao não incluir às mulheres na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Não obstante, o princípio de que a igualdade, a liberdade e a autonomia são comuns a todos os seres humanos, permitiu que as mulheres articulassem um projeto comum de luta.

Em 1929, coincidindo com a crise do capitalismo, Marc Bloch [v] e Lucien Febvre fundaram em Paris a revista Annales d’histoire économique et sociale, que transformou o conceito da história ao priorizar a inclusão de mentalidades, vida cotidiana, costumes, família, sentimentos e subjetividades coletivas, possibilitando estudar as mulheres como sujeitos históricos. Até então, a família estava situada na esfera privada, separada de outro tipo de relações sociais, o que contribuiu a perpetuar uma ideologia da domesticidade, que surgiu com o capitalismo industrial, e promover a invisibilidade das mulheres como trabalhadoras [vi]. Tal como assinalara Lucien Febre a história “não se faz em absoluto dentro de uma torre de marfim. Se faz na própria vida e por seres vivos que estão imersos no século” [vii].

Para Jacques Derrida, há que substituir a lógica tradicional praticada nas ciências sociais por uma nova maneira feminina de abordar o pensamento crítico, seguindo uma lógica de investigação diferente da aplicada à historiografia tradicional. Quer dizer, reescrever a história desde uma perspectiva feminina, colocar novas formas de interpretação, e revisar conceitos e métodos existentes com o objetivo de converter as mulheres em sujeitos da história, reconstruir suas vidas em toda sua diversidade e complexidade, mostrando como atuaram e reagiram em circunstancias impostas, inventariar as fontes com as que contamos e dar um sentido diferente ao tempo histórico, ressaltando o que foi importante em suas vidas [viii].

Nessa perspectiva, significa uma nova valoração das experiências femininas mediante uma nova forma de abordar a história, a revisão de modelos que impregnaram a todos os grupos sociais, e os fatores diferenciais que afetam às mulheres. Tudo isso requer desafios teóricos e metodológicos porque suas pegadas desapareceram. Ninguém se preocupou de registrá-las e assim ficaram escondidas na história tal como outros marginados, como disse Gramsci ao se referir a história das classes oprimidas em Cadernos do Cárcere.

A intensa mobilização social e politica a favor dos direitos civis, a justiça social, a autodeterminação dos povos e a independência política e econômica que ocorreram na década de 1960 na América Latina, possibilitou a mudança do discurso da historiografia tradicional. Coadjuvaram para uma melhor compreensão d história os estudos de gênero porque pleiteavam a necessidade de desconstruir categoria absolutas, e identificar a opressão feminina mostrando modos e práticas culturais que pertencem às mulheres e não aos homens [ix].

Além disso, a mesma orientação da história mudou a partir dos anos 1970 com notável giro temático com relação a história social (elites, caboclos, mestiços, comunidades camponesas, igreja); história agrária (propriedade da terra, prouçao, força de trabalho); história econômica (mineração, construção, sindicatos, mercado); e a história demográfica [x]. Mudança que possibilitou uma relato mais objetivo das diferentes etapas do processo histórico de América Latina. Posteriormente o desenvolvimento da etnohistoria andina significou uma tentativa sistemática para explicar a originalidade e particularidade do passado dessas sociedades e uma mudança da visão que se tinha até então da organização pré-hispânica, sobretudo de sua economia, e os termos de reciprocidade, dualidade e redistribuição da organização do Estado Inca começaram a se utilizados em novas leituras das crônicas e dos documentos espanhóis. Surgiu assim uma história das sociedades indígenas como um corpus histórico com sua própria lógica, categorias, mecanismos de resistência e sobrevivência.

Tudo isso possibilitou o estudo da condição das mulheres nas sociedades pre hispânicas, o impacto produzido pela conquista, sua presença durante a colônia, na luta pela independência e na construção dos Estados Nação. Tarefa nada fácil si se leva em conta que uma das maiores dificuldades que essas pesquisas enfrentaram é que as principais fontes estão constituídas por cronistas espanhóis, em sua maioria sacerdotes, soldados, funcionários e aventureiros, com um discurso não só orientado a justificar a conquista como distorcido por sua própria cultura. Além da carência de uma escrita nos Andes, e do escasso conhecimento que tiveram os espanhóis do idioma quéchua, que segundo Garcilaso, era a causa para que os índios entendessem mal o que os espanhóis lhes perguntavam e o espanhol entendesse pior ainda o que o índio lhe respondia. A isso se agrega a visão patriarcal e uma concepção eurocêntrica incapaz de reconhecer a outra cultura e a outra sociedade. Por isso interpretaram e ordenaram o mundo que encontraram segundo sua ideologia e as categorias da Europa do século 16. Ao Inca o identificaram com o Rei, à Coya com a Rainha, e a seus filhos como os príncipes, “…tão príncipes e infantes como os de Castilla”, segundo Fray Bartolomé de las Casas, e introduziram nos Andes a noção europeia de “monarquia”, que supunha um governante, o que é discutido hoje quando se observa que a organização política andina foi maiormente dualista [xi].

São relatos que narram a conquista e a colonização do Novo Mundo a partir de uma forma particular de pensar a história com valores e interesses de uma historiografia que não “via “ as mulheres e onde a condição das mulheres indígenas foi interpretada de maneira confusa, incorreta e parcializada. Por exemplo, a sucessão e as questões relativas à herança andina deferiam substancialmente da concepção espanhola, e o poder não foi só privilégio masculino, uma vez que as mulheres também o exerciam. Prova disso é a função realizada pelas Coyas, esposas principais do Inca e que alguns territórios estiveram governados por mulheres curacas. Seguindo uma ordem dual onde tudo contém princípios que lutam entre si e ao mesmo tempo se complementam, “uma vez que a existência de qualquer um é condição para a existência do outro. Esta pluralidade de oposições binárias conseguem, em conjunto, um equilíbrio dentro do qual a vida é possível. O equilíbrio não é, logicamente, permanente” [xii]. Por outro lado, o olhar dos cronistas teve um forte desvio de superioridade com relação ao índios, considerados como idólatras, dependentes e infantis.

Outro período da história fundamental para localizar a condição das mulheres é a luta pela independência. Foram numerosos os levantamentos de protesto derivados da conquista espanhola, desde resistência isolada até a mais importante rebelião indígena no Peru, comandada por José Gabriel Condorcanqui Tupac Amaru e Micaela Bastidas, onde as mulheres tiveram uma destacada participação. Pouco depois os mestiços conquistaram a independência, fator indispensável para o desenvolvimento e expansão de seus interesses econômicos e as gestas emancipadoras dirigidas pelos índios foram minimizadas, não obstante que a rebelião de Tupac Amaru e Micaela Bastidas sacudiu os alicerces do sistema colonial.

Por isso, o estudo da participação das mulheres nesse período têm necessariamente que incluir um movimento paralelo que compreenda a ideologia da exclusão por ser mulher e por ser índia, e as diferentes formas que adquiriu esta participação. A significativa presença das mulheres na rebelião de Tupac Amaru, em postos de comando e responsabilidade, tem origem na própria sociedade indígena onde as mulheres ocuparam uma elevada posição na família e no ayllu, e quando as circunstâncias demandaram, as viúvas e irmãs dos chefes foram aceitas como legítimas líderes. Presença que guarda relação com o profundo vínculo ritual e mítico com a terra, com seus costumes ancestrais, suas deusas criadoras da vida e dos alimentos, elemento fundamental de resistência durante a conquista e a colonização. Não puderam ser arrancadas de sua consciência nem de sua prática; enquanto por efeito da conquista os deuses masculinos, encabeçados pelo Sol e a sociedade inteira entrou em crise, as deidades femininas não desapareceram.

A reconstrução do passado feminino durante o processo de independência significa outorgar voz às mulheres que participaram nas gestas emancipadoras dando assim uma maior coerência a nossa história ao desarticular o caráter excludente e discriminador das representações discursivas do outro, estabelecidas na colônia através de padrões de poder fundado em uma hierarquia social, étnica e de gênero.

*Sara Beatriz Guardia é diretora do Centro de Estudos A Mulher na História da América Latina, da Cátedra José Carlos Mariátegui e representa Diálogos do Sul no Peru.