Constituintes deram primeiro passo para transformações políticas

A proposta feita pela presidenta Dilma Rousseff na segunda-feira (24) de convocar um plebiscito para autorizar uma Constituinte exclusiva sobre a reforma política foi recebida com surpresa e críticas pelo meio jurídico brasileiro. No entanto, o dispositivo que remonta à formação de um organismo colegiado para reformar ou refazer do zero uma Constituição, serviu de primeiro passo para a realização de transformações relevantes em três países nos últimos anos.

Por João Novaes, no Opera Mundi

Na América do Sul, ela se tornou um dos recursos para os governos do Equador e da Bolívia transformarem suas estruturas políticas. As duas iniciativas tinham inspiração na Constituição Bolivariana da Venezuela, de 1999 e, em ambas as ocasiões, a população pôde participar do processo para escolher os membros da assembleia e, em seguida, aprovar o texto final formulado por seus integrantes. A diferença para o caso brasileiro é que este pretende utilizar a Assembleia para tratar de um tema exclusivo, embora amplo, como a reforma política – e os processos de participação popular ainda não estão definidos.

Expansão de direitos

A Bolívia precisou de quase três anos para completar todo o processo, desde a convocação para a formação da Assembleia até a entrada em vigor da nova Carta Magna. Foi iniciativa do governo do presidente Evo Morales que pretendia, entre outras mudanças, dar mais garantias às populações nativas do país e ter meios para implantar uma agenda mais progressista.

Em 2 de julho de 2006, ocorreu a primeira etapa, que elegeu os membros da Assembleia Constituinte, com pouco mais da maioria simples favorável ao partido Movimento ao Socialismo, do presidente Evo Morales. Mas para o texto ser aprovado pela assembleia eram necessários dois terços (66%) dos votos. Foi necessário um acordo político com a oposição para a aprovação do texto a ser levado a referendo popular.

Após ter sido postergado por duas ocasiões pela justiça local, o referendo constitucional foi realizado em 7 de dezembro de 2008 e aprovada com 61,43% dos votos.

A nova Constituição boliviana entrou em vigor em 7 de fevereiro de 2009 (três meses após a aprovação popular) e previa, como principal mudança, o fortalecimento da população indígena, que passava a ter uma representação mínima garantida por quotas no Congresso; além de uma ordenação jurídica voltada às necessidades dessa parcela da população que vive no campo; o direito à autonomia e ao autogoverno e terras; e o direito à propriedade dos recursos naturais de suas comunidades.

Entre outras ações, o país também passou a pleitear como direito irrevogável uma saída para o Oceano Pacífico; proibiu o latifúndio (o limite de terras para cultivos foi decido diretamente no referendo); passou a privilegiar investimentos na economia nacional em relação à estrangeira; tirou do catolicismo a posição de religião oficial; passou a considerar o cultivo de coca como patrimônio cultural; introduziu outras 36 línguas indígenas como idioma oficial ao lado do espanhol; e colocou a exploração de seus recursos naturais sob responsabilidade do Estado.

Também possibilitou que Morales pudesse concorrer à uma segunda reeleição, já que seu primeiro mandato contemplava a Constituição anterior. Outra alteração importante foi que o Estado passava se constituir como plurinacional, ou seja, plural, unitário, soberano, democrático e multicultural.

Revolução Cidadã

No Equador, o presidente Rafael Correa, em seu primeiro ano de mandato, em 2007, cumpriu sua principal promessa de campanha e convocou a população para um referendo que, por sua vez, decidiu favoravelmente pela criação de uma Assembleia Constituinte, encarregada de formular uma nova Constituição para o país.

Na primeira etapa, a população concordou com a realização de uma Assembleia, que acabou sendo aprovada por 81,72% dos votos em 15 de abril de 2007.


Em 30 de setembro, com nova eleição popular, de daquele ano foram escolhidos os 130 representantes que redigiram a nova Carta Magna do país, base para a “Revolução Cidadã”, principal marca do governo de Correa. As votações foram transmitidas ao vivo e, durante alguns meses, o órgão assumiu os poderes legislativos do Congresso até que a nova carta fosse submetida a referendo.

Duas disposições importantes, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e um artigo que colocava o quéchua como um dos idiomas oficiais, foram tirados na última hora, e o texto a ser apresentado à população conseguiu ser aprovado por 94 congressistas.

O texto foi submetido a votação popular em 28 de setembro de 2008 e aprovado por 63,93% dos votos.

Entre as disposições mais importantes, o texto permitiu a possibilidade de Correa se reeleger por mais dois períodos eleitorais consecutivos; permitiu que o país estipulasse uma moratória da dívida pública; ampliou o papel do Estado em setores estratégicos da economia, como mineração, petróleo e agropecuária; concedeu uma ampla margem de manobra para o país renegociar contratos de petróleo; descriminalizou o consumo de drogas; e registrou avanços nos conceitos de soberania alimentar e nas uniões entre pessoas do mesmo sexo (embora ainda exclua o conceito de casamento).

Foi também a primeira Constituição no mundo a reconhecer os direitos da Natureza, como os artigos 71 a 74 que proíbem a extração de bens não renováveis em áreas protegidas. Os latifúndios ficaram proibidos para permitirem o reflorestamento e a reabilitação do solo.

Participação popular

Fora do contexto sul-americano, chama a atenção o caso da Islândia, que inovou ao abrir uma nova alternativa à participação popular. O arquipélago escandinavo foi, em 2008, o primeiro país afetado pela crise das dívidas soberanas europeias, quando seus vencimentos representavam 900% do PIB e a moeda nacional desvalorizou 80% em relação ao euro.

Em profunda recessão, com uma diminuição do PIB em 11% em dois anos, o governo conservador quis aplicar as medidas de austeridade exigidas pelo FMI em troca de um aporte financeiro de 2,1 bilhões de euros em 2009. Entretanto, uma forte mobilização popular obrigou o premiê a renunciar.

Um novo governo, de base progressista, apoiado pela maioria popular que se recusou a contribuir para salvar bancos duas vezes em referendo, convocou uma nova Assembleia Constituinte formada por 25 cidadãos eleitos por sufrágio universal em 16 de junho de 2010.

A novidade foi que, através de diversas redes sociais, os islandeses puderam acompanhar o andamento dos trabalhos e também participar efetivamente deles. O objetivo da medida foi fazer com que as mudanças contassem efetivamente com a participação da população. O governo autorizou a criação de uma página no Facebook para que internautas sugerissem mudanças, além de também contemplar o processo via Twitter, YouTube e Flickr.

A assembleia tinha um site oficial em islandês e em inglês sobre o projeto de reforma. Nela, os cidadãos podiam ler os comentários postados nas redes e, todas as quintas-feiras, era realizado um debate transmitido ao vivo com todos os temas e sugestões.

Uma nova Constituição, redigida pelos constituintes e composta por nove capítulos e 114 artigos, foi aprovada em 20 de outubro de 2012. Ela prevê o direito à informação, com acesso público aos documentos oficiais (artigo 15), a criação de uma Comissão de Controle da Responsabilidade do Governo (artigo 63), o direito à consulta direta (artigo 65) – ou seja, 10% dos eleitores podem pedir um referendo sobre as leis votadas pelo Parlamento –, assim como a nomeação do primeiro-ministro pelo Parlamento. Assim como os países sul-americanos, também passou a considerar os recursos naturais como patrimônio natural, sem direito à propriedade privada.

João Novaes é jornalista