Publicado 23/08/2013 09:33 | Editado 04/03/2020 16:27
Consta que Jorge Amado, em suas andanças por Fortaleza, certa vez, ouviu em roda de bar, no restaurante do Cury, a história do Cabo Plutarco, um boêmio massapêense/carioca, a qual serviu de base para o fabuloso Quincas Berro D´Água. E que o contador de tal causo teria sido o folclorista Leonardo Mota. O certo é que o escritor baiano ficou tão encantado com a performance do narrador que o fez personagem de Gabriela, cravo e canela, o tal poeta conferencista que na primeira versão global para o teleteatro foi encarnado pelo ator Hugo Carvana. Por sua vez o Cabo Plutarco mereceu biografia de seu conterrâneo José Helder de Souza.
Fica que Leota era um excelente papo, onde estivesse congregava um grande círculo de admiradores para saber de suas andanças por este Nordeste afora, onde instalava sua banca ambulante de advogado ao mesmo tempo em que colhia preciosidades do nosso folclore. O pires que rodava nas conferências custeava despesas de viagem e edições de seus valiosos livros, “manuais de intimidade e inspiração sertaneja”, verdadeiros tratados da alma popular: anedotário, adagiário, locução matuta e, principalmente, a verve poética dos repentistas.
Por conta de suas idas e vindas, ao demorar-se na capital cearense, seu ancoradouro oficial, transferia a banca para a mesa do bar, e então o “embaixador do sertão” passava a desatar o rosário de observações: cantos, benditos, histórias de assombração, bravatas de vaqueiros e soldados, galhofas em torno de padres e políticos; tudo colhido na fonte, o sertão. E traduzido pelo olhar perspicaz deste garimpador da nossa cultura popular que preferia ouvir a lenga-lenga matuta aos clamores de seus clientes no gabinete de causídico. Ao narrar, na mesa do botequim, para a fiel plateia de amigos, nada mais estava fazendo que o arcabouço de suas conferências saborosas onde brilhava o orador vibrante e desatado; o esqueleto de seus livros onde pontificava o arguto observador e minucioso catalogador das joias raras do povo simples.
E foram tantas as assembleias, as santas palavras perdidas no ar por falta de mecanismos de gravação naqueles tempos de alfarrábios manuscritos e raríssimas máquinas de escrever. E foram tantos os livros, estes, graças, reeditados para nosso consolo e salvação da real história do povo. Se bem que, na mais das vezes, Leota estruturava rigorosamente suas palestras em folhas e folhas de papel almaço, verdadeiro cartapácio com o qual varava a inflexibilidade das ampulhetas deixando a plateia atenta por mérito do assunto original e divertido e sua atraente oratória. E graças a esta atropelada programação, hoje dispomos de um completo diagnóstico da vida do homem enraizado nas brenhas do Nordeste brasileiro.
Estamos comemorando o mês do folclore. Medida providencial, mesmo que estudos de cultura popular sigam eivados de crenças e superstições sobre este nefasto agosto, entretanto há o anedotário para alegrar as almas e afastar os maus agouros desta quadra adversa do calendário. Razão porque escolhemos Leonardo Mota como tema para esta crônica. É uma maneira de reverenciar este criterioso pesquisador de nossos costumes. Leota é autor de Sertão alegre, No tempo de Lampião, Cantadores, Violeiros do Norte, Prosa vadia, Padaria Espiritual, Os cabeças-chatas e um adagiário incompleto. Para quem se foi aos cinquenta e sete anos é uma obra extensa, principalmente por não se tratar de ficção, e sim, coletânea de dados pesquisados por cerca de oitenta cidades brasileiras.
Confidente da grande alma poética do sertanejo, como disse Aníbal Fernandes, tudo o que sabia havia vivenciado. Não gostava de intelectualizar sua massa bruta; o que havia garimpado conservava com a autenticidade do falar matuto. E quando de suas conferências, não seguia a metodologia dos folcloristas ortodoxos; temia se tornar um estudioso de gabinete, o campo era sua fonte pura. Confessava: “Ninguém imagina como eu quero bem a isto, como acho isto bonito! (…) Se vocês querem poesia, mas poesia de verdade, entrem no povo, metam-se por aí, por esses rincões, passem uma noite num rancho, à beira do fogo, entre violeiros”.
Leota trocou um cartório por tudo isso. O conforto da cidade pela vida rude do sertão. Da saúde, pouco cuidava, obeso, relaxava na alimentação, primava no excesso da bebida. Ele mesmo dizia só conseguir prosperar nas banhas que os violentos jejuns sequer comprometiam. Quando já muito doente, acometido de cirrose hepática, ao ser tratado exclamou: “Ora vejam só como são esses médicos: tiram água da minha barriga, uma coisa que nunca bebi”.
Na recente edição do almanaque DeUmTudo ilustramos a capa com alegoria em torno do folclore evidenciando a imagem de Leonardo Mota. É nossa intenção, manter uma coluna, com o título que batiza esta matéria, reproduzindo trechos de seus livros. Uma maneira da nova geração ter contato com este irreverente contador de causos das gentes do nosso chão. Antes que se perca de vez os rascunhos das nossas raízes tão mal irrigadas.
*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo
Fonte: O Povo