Constituição Cidadã, a mais democrática constituição brasileira

A Constituição de 1988, que foi promulgada em 5 de outubro de 1988 – há 25 anos, completados neste sábado – é a mais democrática da história brasileira.

Por José Carlos Ruy

Constituição cidadã

É também a segunda mais longeva Carta Magna do período republicano (a Constituição imperial, que não pode ser qualificada de democrática, teve a mais longa duração, entre 1824 e o final do Império – 65 anos, uma longa estabilidade derivada do poder absoluto concentrado na pessoa do imperador).

A Constituição de 1891 esteve vigente até a revolução de 1930, quando foi posta de lado. Sua vigência foi de 43 anos. Sua substituta foi efêmera, com vigência de três anos, entre 1934 e 1937. Foi substituída por outra, de feição fascista – a “polaca” -, vigente até 1946, quando a nova Carta, elaborada pela Constituinte eleita em 1945, abriu um período de democracia relativa que durou até o golpe militar de 1964 – foram 18 anos de vigência até sua substituição pelo regimento adotado em 1967 pela direita e pelos generais que passaram a controlar o poder político; a ordem jurídica da ditadura durou outras duas décadas, sendo superada no final do regime militar, em 1985, e pela constituinte que, reunida em 1987/1988, adotou a Carta que o então presidente da Câmara e da Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, apelidou de Constituição Cidadã.

As Constituições correspondem, e registram, mudanças sociais profundas que levam a novas correlações de força nas sociedades. Uma constituição não é um programa, como registrou o líder soviético Josef Stalin, citado pelo constituinte Jorge Amado na Assembleia de 1946. “Uma Constituição não deve confundir-se com um programa. Isso significa que existe uma diferença essencial entre uma Constituição e um programa. Enquanto um programa formula o que ainda não existe, aquilo que é necessário alcançar e conquistar no futuro, uma Constituição, ao contrário, deve tratar do que já existe, daquilo que já se conquistou”; isto é, um programa “refere-se, principalmente, ao futuro: uma Constituição refere-se, principalmente, ao passado”.

É uma avaliação que descende, em linha direta, daquilo que o jovem Marx escreveu em 1843, já apontando para a concepção materialista que desenvolveria.

Em sua filosofia, cujo centro era o desenvolvimento da ideia, do conceito, Hegel via o fundamento da política justamente na esfera do racional e colocava o regime constitucional neste patamar, como expressão de uma racionalidade ideal – uma avaliação idealista muito comum em muitos analistas para quem os fundamentos de uma Constituição baseiam-se na razão e não nas lutas sociais e políticas reais e concretas.

Marx rompeu essa concepção e fundamentou sua avaliação no estudo das contradições concretas do mundo real, de cuja resolução as constituições emanam, correspondendo à correlação de forças que se estabelece no embate político. A necessidade de uma nova Constituição se impõe, pensava Marx, quando as normas vigentes deixam de representar uma nova situação que resulta de um desenvolvimento novo ocorrido no mundo real. Quando o poder legislativo (representante da vontade do povo) entra em conflito com o poder governamental (“representante da vontade particular, do arbítrio subjetivo, da parte mágica da vontade”), abre-se uma situação que se resolve em uma nova Constituição. E Marx pergunta: ”tem o povo o direito de se dar uma nova constituição?” A resposta é afirmativa: sim, “na medida em que a constituição, tão logo deixou de ser expressão real da vontade popular, tornou-se uma ilusão prática”.

Nesse sentido, para Marx uma Constituição não é senão “um tratado entre poderes essencialmente heterogêneos”. É uma “espécie de acordo político”, entre o poder do Estado e do governo e a chamada sociedade civil. As constituições surgiram, diz um especialista contemporâneo, “no quadro de um processo de limitação e fragmentação do poder absoluto, tal como se consolidou nas monarquias europeias” (Vergottini: 1986).

A história das constituições e constituintes brasileiras ilustra esses ensinamentos. O Brasil teve, desde 1823, cinco assembleias constituintes: 1823, 1891, 1934, 1946 e 1987/1988. E teve sete constituições – quatro resultaram daquelas assembleias e três foram outorgadas, impostas por regimes discricionários: foram as cartas de 1824, 1937 e 1967.

Todas elas foram fruto, como ensina Marx, da conjuntura particular de cada época, da natureza das rupturas institucionais que deram origem a elas.

A Constituição da monarquia escravista

A primeira Constituição brasileira, a imperial – outorgada em 1824 – foi resultado da conquista da Independência e do quadro de forças que levou a ela e à implantação da monarquia escravista, da qual era a expressão legal.

Sua convocação, em 3 de junho de 1822, foi o primeiro ato de soberania brasileira, apesar de anterior à proclamação formal da separação com Portugal, em 7 de setembro daquele ano. Sua convocação foi o rompimento efetivo com o domínio português. José Bonifácio, o primeiro chefe de governo que o Brasil teve, foi quem convenceu o príncipe D. Pedro a convocar a constituinte.

A população brasileira não chegava a cinco milhões de habitantes, e a enorme massa de trabalhadores (1,15 milhões) era constituída por escravos, que representavam quase um terço da população (29%).

A primeira Assembleia Constituinte foi o cenário em que se exprimiram as contradições da época que podem ser sintetizadas em duas dimensões. Uma era claramente política e opunha os anseios federalistas e autonomistas das províncias ao centralismo monárquico encarnado por D. Pedro. Outra era econômica e social (embora também se traduzisse no campo político e, em seu desenvolvimento, viesse a fortalecer o centralismo monárquico contra as demandas federalistas das províncias). Era a contradição entre setores que, hoje, se poderiam chamar de desenvolvimentistas, e que eram moderadamente contrários à escravidão, ao monopólio da posse da terra e à chamada “vocação” agrária do Brasil. Esses setores se opunham à facção dominante formada pela elite agroexportadora que controlava as finanças do país que se construía, e era aliada a senhores de terras e de escravos.

Esse embate foi fatal para nossa primeira constituinte. O monarca Pedro I não aceitava limites a seus poderes e, na sessão de abertura, ele próprio declarou que “defenderia a Pátria, a nação e a Constituição, se fosse digna do Brasil e de mim”.

Os oligarcas que dominavam a constituinte rejeitaram as propostas de José Bonifácio pela abolição gradual da escravatura, distribuição de terras aos negros e índios, agricultura para atender principalmente ao consumo interno, apoio do governo ao desenvolvimento da indústria nacional, autonomia do governo em relação à “alta finança”.

Na ocasião, o imperador e a oligarquia agrária, escravista e exportadora formaram o conluio que levou ao fechamento da Assembleia em 11 de novembro de 1823. No ano seguinte, Pedro I outorgou a Constituição do Império, que foi submetida a um arremedo de consulta às Câmaras Municipais, sendo mantida em vigor até o final do império, em 1889. Essa Carta dava poderes absolutos ao Imperador, que foi declarado “inviolável e sagrado”, não submetido a nenhum outro poder. O “poder moderador” dava ao monarca o poder de fechar o Parlamento, convocar eleições, conceder anistia, nomear os presidentes provinciais e os senadores, nomear e destituir ministros, chefes militares, padres e bispos, etc. A religião católica foi declarada oficial; a Carta declarava cidadãos brasileiros todos os nascidos no país, “sejam ingênuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro” (ingênuo era o filho de escravo nascido livre), e também os portugueses que aderissem à Independência.

Foi adotado um sistema eleitoral com voto em dois níveis e várias restrições ao direito de voto, principalmente aos menores de 25 anos solteiros e várias categorias de trabalhadores. Era exigida, para o exercício desse direito, na primeira fase da votação, renda liquida anual de cem mil réis, “por bens de raiz, indústria, comércio, ou empregos”. Para os eleitores da etapa seguinte a renda exigida era maior, superior a “duzentos mil réis por bens de raiz, indústria, comércio, ou emprego”. E só podiam ser eleitos deputados ou senadores aqueles que tivessem renda líquida superior a quatrocentos mil réis e fossem brasileiros natos e católicos.

Embora fosse uma sociedade escravista, a Constituição imperial não se referia aos escravos. Muitos alegavam que não era assunto digno dela. Mas, o caráter absoluto que dava à propriedade privada incluía em seu texto a propriedade escrava, cuja plenitude era assegurada. E era regulamentada por leis ordinárias, pela Consolidação das Leis Civis, que permitia a venda, compra e a transmissão por herança, e que um escravo pudesse ser dado em garantia hipotecária.

Pelo lado positivo, a Constituição imperial registrou algumas conquistas democráticas, entre elas a liberdade de imprensa, de expressão e o sigilo da correspondência, e abolia as penas de açoite e outras consideradas “cruéis” – exceto, evidentemente, em relação aos escravos, mas aplicável apenas aos cidadãos reconhecidos constitucionalmente. Outra inovação, que teve aplicação muito limitada, foi a introdução da instrução primária gratuita para todos os cidadãos.

A Constituição republicana

Se a primeira constituição brasileira correspondeu à Independência e às mudanças que decorriam dela, a Constituição republicana de 1891 foi o reflexo de novo avanço alcançado no final do século XIX: o fim, em 1888, da escravidão e, no ano seguinte, a substituição da monarquia pela república.

O Brasil começava a mudar a forma de produzir e organizar a produção, e transitava do modo de produção escravista para o modo de produção capitalista, embora este ainda estivesse longe de ser hegemônico na formação social brasileira. Daí que as consequências jurídicas foram importantes uma vez que o modo de produção capitalista é incompatível com a escravidão na medida em que esta representa a falta absoluta de liberdade do indivíduo para cumprir aquele estatuto teórico requerido pelo modo de produção capitalista: a capacidade e a autonomia para firmar contratos e cumpri-los.

Para existir – e este é outro ensinamento deixado por Karl Marx – o modo de produção capitalista requer o trabalhador livre em dois sentidos: juridicamente, sem depender de nenhum senhor, e também destituído dos meios e instrumentos de produção. Essa dupla condição de liberdade é fundamental para que a força de trabalho seja transformada em mercadoria e o trabalhador juridicamente livre possa, e seja obrigado, a vendê-la para um patrão.

Coube à Constituição republicana estabelecer a igualdade jurídica formal entre os cidadãos, que a Constituição do Estado imperial e escravista não podia reconhecer.

Aquele era um período de transição em que se lançavam as bases da transformação burguesa do Estado numa sociedade onde o modo de produção capitalista ainda não era hegemônico e prevaleciam formas pré-capitalistas de organização do trabalho e remuneração do trabalhador.

Neste, republicano, já havia um proletariado aguerrido no país, particularmente em grandes centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Porto Alegre, embora a imensa maioria dos trabalhadores permanecesse nas fazendas, no regime do colonato, no qual o salário era apenas parte de sua remuneração; a parte principal era formada pelos produtos que o próprio trabalhador obtinha nos pedaços de terra das fazendas onde tinha permissão para produzir para seu próprio consumo, podendo comercializar o excedente e, assim, gerar uma renda monetária para seu próprio uso.

Aquela era uma sociedade onde os interesses de classe estavam mais claramente definidos; havia uma pequena burguesia urbana nitidamente estabelecida, nascia uma burguesia industrial, a classe operária surgia ao lado de um conjunto crescente de interesses que se diferenciavam e entravam em oposição à velha oligarquia.

O Brasil tinha então 14,3 milhões de habitantes. A agricultura concentrava a imensa maioria da força de trabalho, com 5,1 milhão de pessoas ocupadas, representando 43% dos 11,8 milhões de trabalhadores; o outro segmento era o serviço doméstico, que empregava 2,5 milhões de pessoas (21% do total). A indústria empregava apenas 320 mil trabalhadores (2,7% do total).

O período da proclamação da República e elaboração da nova Constituição foi marcado por lutas intensas que se refletiram na constituinte de 1891. Ela opunha os setores urbanos democráticos e populares contra a velha aliança entre oligarquias latifundiárias, grande capital mercantil e capital estrangeiro, que defendiam apenas a mudança política, principalmente a federação e a autonomia provincial; sendo liberais, queriam o Estado afastado da vida econômica e social, que deveria ser deixada à livre ação das forças do mercado.

A novidade naquela constituinte foi a presença pioneira no parlamento brasileiro de um representante dos trabalhadores: o tenente da Marinha José Augusto Vinhaes, que foi eleito pelo Distrito Federal pelo pequeno Partido Operário de 1890, com base entre os ferroviários da Central do Brasil.

A assembleia foi instalada em 15 de novembro de 1890, e seu trabalho foi rápido. A Carta promulgada em 24 de fevereiro de 1891 era enxuta, composta por apenas 99 artigos. Era federalista, presidencialista e laica. Criou um estado formalmente democrático, separou Igreja e Estado, instituiu um Senado temporário (ao contrário do imperial, que era vitalício), fixou a separação entre os três poderes (executivo, legislativo e judiciário) e eliminou a excrecência representada pelo poder moderador. Inovou numa série de aspectos; acabou com a religião oficial; reconheceu amplos direitos de cidadania, declarou a igualdade de todos perante a lei; assegurou a plena liberdade religiosa, declarou laico o ensino nas escolas públicas e passou a reconhecer apenas o casamento civil. Declarou pleno o direito de propriedade, mas admitiu “a desapropriação por necessidade ou utilidade pública”. Assegurou a liberdade de pensamento, garantiu o direito de reunião; manteve a inviolabilidade da correspondência; manteve também o estado de sítio, em caso de agressão estrangeira ou “comoção intestina”. Declarou eleitores todos os cidadãos maiores de 21 anos, exceto os mendigos, analfabetos, praças de pré (exceto os alunos das escolas militares de ensino superior) e religiosos sujeitos a voto de obediência e renúncia da liberdade Individual. Ao não definir explicitamente que o voto seria secreto, abriu a porta para o controle pelos “coronéis” de seus currais eleitorais. Não proibiu explicitamente o voto da mulher, mas remeteu a questão à lei comum (são eleitores os “que se alistarem na forma da lei”).

O Brasil moderno nasce com a revolução de 1930

A revolução de 1930 virou a página da chamada República Velha e do domínio absoluto das oligarquias agromercantis, começando a construir o Brasil moderno. Na década de 1920 acelerou-se a transição que levou à hegemonia do modo de produção capitalista no Brasil, acirrando as contradições políticas e sociais, agravadas no final da década pela crise econômica mundial, que atingiu com força a economia brasileira baseada na exportação de um único produto, o café.

A economia agrária que ainda prevalecia era a base do poder dos “coronéis”. Mas as mudanças eram aceleradas. Em 1920 o Brasil tinha 30,6 milhões de habitantes. A agricultura ainda ocupava a maior parte dos trabalhadores. O censo de 1920 foi muito precário; por isso, as mudanças ocorridas podem ser avaliadas com mais precisão pelos dados do censo de 1940 (em 1930 não houve censo). Dos 14,8 milhões de trabalhadores, 9,8 milhões estavam em atividades agrícolas (66% do total), e apenas 1,6 milhões estava na indústria (11% do total).

O país tornava-se socialmente mais complexo, agudizando contradições que se refletiram na Assembleia Nacional Constituinte de 1934, onde as grandes novidades foram a presença, pela primeira vez, de uma mulher (a paulista Carlota Pereira de Queirós) e de uma bancada de 40 deputados classistas indicados pelos sindicatos de trabalhadores e patronais e por associações profissionais. Pela primeira vez houve uma representação proletária regular em um parlamento brasileiro, entre eles um representante do Partido Comunista do Brasil, o catarinense Álvaro Ventura, que era estivador.

A constituinte refletiu a disputa intensa entre os oligarcas derrotados em 1930, que se levantaram na insurreição oligárquica de São Paulo, em 1932, exigindo a reconstitucionalização do país como forma de restabelecer, pelo menos parcialmente, seu domínio anterior.

A instalação da constituinte foi um processo demorado. Ela foi convocada em 7 de abril de 1932, três meses antes da eclosão do levante paulista. A eleição só pode ser realizada depois da guerra civil, em 3 de maio de 1933, sendo a Assembleia instalada em 15 de novembro de 1933.

A Constituição, promulgada em 16 de julho de 1934, sendo a mais efêmera das Cartas brasileiras: teve vigência por apenas três anos, três meses e quinze dias, e foi rasgada pelo golpe de Estado de 10 de novembro de 1937 que deu origem à ditadura do Estado Novo.

Refletiu o ideário social democrata das constituições europeias posteriores à Primeira Grande Guerra e à Revolução Russa de 1917; ampliou os poderes da União, reduziu as atribuições do Senado e reconheceu uma série de direitos sociais e trabalhistas. Inovou ao introduzir um capítulo sobre Ordem Econômica e Social e ao reconhecer a liberdade de organização sindical e várias outras reivindicações operárias, como o salário mínimo, a jornada diária de oito horas, salário igual para trabalho igual, repouso semanal remunerado, férias anuais, indenização no caso de demissões sem causa justa, reconhecimento das convenções coletivas de trabalho, assistência médica e sanitária, previdência social, amparo à maternidade e à infância, proibição do trabalho a menores de 14 anos.

Contudo, em novembro de 1937. Getúlio Vargas comandou o rompimento com a ordem legal e trocou a Carta por uma constituição outorgada, batizada de “Polaca”, de nítida inspiração fascista. Havia então uma conjuntura de radicalização direitista posterior ao levante da Aliança Nacional Libertadora, em 1935, que acentuou o feroz anticomunismo das classes dominantes. Foi a inauguração da ditadura do Estado Novo.

No rumo da democracia

O final do Estado Novo e a volta da democracia foram marcados pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte que, eleita em dezembro de 1945, redigiu entre fevereiro e setembro de 1946 uma nova Carta Magna democrática para o Brasil.

As mudanças na sociedade haviam se aprofundado desde 1930. E podem ser vistas através dos dados dos Censos de 1940 e 1950, que revelam a aceleração do declínio do velho Brasil agrário ante o novo, da indústria e das cidades, que se fortalecia.

Em 1950 o Brasil tinha 51,9 milhões de habitantes; um terço deles estava nas cidades (36%). As mudanças ficam mais nítidas quando se analisa a distribuição ocupacional da população. Em 1950 a indústria ocupava 2,2 milhões de trabalhadores, empregados por cerca de 83 mil estabelecimentos, a imensa maioria dos quais muito pequenos: mais de 95% eram empresas “artesanais”, com uma média de sete trabalhadores cada. Somente cerca de 4% eram empresas com uma média de 154 trabalhadores cada. As demais eram as grandes empresas que despontavam – um universo com cerca de 320 estabelecimentos que tinham, em média, 1.172 trabalhadores cada (Koval: 1982).

A agricultura continuava ocupando a imensa maioria dos trabalhadores: mais de 10 milhões (60% do total de 17 milhões que formavam a população economicamente ativa em 1950). Mas a mudança no campo era profunda, superando as velhas formas pré-capitalistas do colonato pelo trabalho assalariado tipicamente capitalista.

A entrada em crise do colonato, que predominou desde o final da escravidão, acelerou o fim da transição, iniciada ainda no século XIX, no rumo da plena hegemonia do modo de produção capitalista na formação social brasileira. Em 1950, enquanto o número de colonos caiu para 1,4 milhões (em 1940 passavam de 4,5 milhões), o contingente de trabalhadores temporários (os boias-frias da década de 1970, assalariados diaristas) era de 2,3 milhões (em 1940 eram menos da metade, 1,1 milhão). Isso permite concluir que o colono estava sendo rapidamente substituído pelo trabalhador que, morando nas periferias das cidades, vendia diariamente sua força de trabalho ao fazendeiro, fazendo avançar o pleno e miserável assalariamento da mão de obra no campo.

O velho Brasil agrário saia de cena e as mudanças na estrutura da sociedade precisavam ser acompanhadas pelas alterações democráticas que fundamentavam a igualdade formal. Mas esta não foi uma mudança revolucionária, podendo ser descrita pela expressão cunhada por Lênin ao analisar a modernização capitalista do campo em países como a Alemanha: a “via prussiana”, ou “revolução pelo alto”, conservadora e não democrática.

Uma ordem conservadora que esteve no alvo da ação do Partido Comunista, quando seus dirigentes diziam, inclusive nos debates da Assembleia Constituintes de 1946, que o principal obstáculo ao desenvolvimento nacional e à democracia era formado pelos vestígios do feudalismo que persistiam na agricultura e precisavam ser superados. Era preciso, defendiam os comunistas, abrir caminho para um desenvolvimento capitalista como etapa preparatória do passo seguinte, a luta pelo socialismo.

Modernização conservadora e ditadura

A Constituição de 1946, que representou um avanço democrático formal e acolheu as conquistas que foram registradas na Carta de 1934, acumulou também – diz a historiadora Emília Viotti da Costa – tensões resultantes da convivência entre formas corporativas e formas liberais; “o regime anunciado pomposamente como uma volta ao Estado liberal e democrático revelou-se, com o tempo, elitista, excludente, marcado por práticas oligárquicas, clientelísticas, autoritárias e corporativistas”, que eram desfavoráveis ao povo, à democracia e à soberania nacional quando ocorreu o golpe militar de 1964. A Constituição foi rasgada pelos generais e substituída, em 1967, pela Carta outorgada que pretendia legitimar a ditadura – carta que teve seu autoritarismo radicalizado pela emenda constitucional de 17 de outubro de 1969, que acentuou seu caráter fascista.

Consolidação democrática e avanço popular

A Constituição de 1988 se insere, assim, nesta longa história marcada por mudanças profundas na sociedade brasileira. Na etapa anterior, as Constituições refletiram a transição que levou à hegemonia do modo de produção capitalista na sociedade brasileira, à carta democrática de 1946 e também à sua substituição pela carta outorgada em 1967.

Esse processo lento, e tortuoso, da luta de classes assegurou a superação dos traços pré-capitalistas e a hegemonia das formas jurídicas, contratuais, típicas do capitalismo, mas não pode assegurar as conquistas democráticas alcançadas já em 1946, para não dizer em 1934. O país precisou esperar mais meio século para encontrar o rumo da consolidação democrática, alcançado somente ao final da ditadura, em 1985, e registrado na Constituição de 1988, que culmina e conclui aquele longo processo de transição democrática.

O Brasil, em 1988, era um país industrial e urbano, sob plena hegemonia do modo de produção capitalista. Seus trabalhadores estavam dedicados a funções urbanas, na indústria ou em atividades de serviços. E mesmo nas atividades agrícolas prevaleciam relações tipicamente capitalistas. A imensa maioria dos trabalhadores era de assalariados, na cidade e no campo; eles conviviam ao lado de enormes contingentes relegados ao subemprego ou ao emprego informal. A burguesia industrial se fortalecera numa economia dependente e convivia com um poderoso setor de empresas estrangeiras; a força dos representantes do capital externo era avassaladora, da mesma forma que a hegemonia do capital financeiro; o poder dos senhores de terras, que se transformavam em empresários agrários, continuava muito forte.

Em traços sumários, este era o Brasil que saiu da ditadura militar de 1964. O marxismo ensina que uma Constituição reflete a correlação de forças que existe na sociedade que a formula, pois a Constituição de 1988 é um exemplo quase didático dessa verdade.

Em 1º de fevereiro de 1987, 559 constituintes se reuniram para iniciar o trabalho de elaboração constitucional que seguiu até 5 de outubro do ano seguinte, um ano e oito meses depois. Essa foi uma constituinte democrática, que acolheu quase 12 mil sugestões populares e mais de 66 mil emendas. A Constituição de 1988 registrou um conjunto de conquistas sociais e democráticas, embora 112 dispositivos constitucionais ainda não tenham sido regulamentados e nem se tornaram, em consequência, direitos efetivos.

Encruzilhada histórica

A constituinte de 1987/1988 refletiu a encruzilhada histórica (como disse João Amazonas) em que o Brasil se encontrava então. Nenhuma das grandes correntes sociais presentes no embate político brasileiro – setores democráticos e populares, empresários nacionais da cidade e do campo, e setores neoliberais aliados do capital estrangeiro – teve força para emplacar seu próprio programa na elaboração constitucional. O texto final da Carta ampliou os direitos sociais, políticos e econômicos do povo, dos trabalhadores, e da nacionalidade. Mas acolheu também – fruto das contradições daquela “encruzilhada histórica”, restrições severas que não permitem a plena vigência daqueles direitos, muitos dos quais ainda à espera, 25 anos depois, de regulamentação. A reforma agrária, a regulamentação das comunicações, o reconhecimento do direito de greve de servidores públicos, a limitação de compra de terras por estrangeiros, o imposto sobre grandes fortunas, a exploração de recursos naturais em reservas indígenas, são pontos que ainda aguardam a aprovação de leis que os regulamentem.

A representação popular foi grande na constituinte, mas não teve maioria suficiente para fazer prevalecer seu programa; da mesma maneira, foi o que ocorreu com as representações do empresariado nacional e dos neoliberais aliados ao capital estrangeiro. Essa espécie de tripartição que ocorreu na constituinte ajuda a entender os avanços democráticos e sociais ali registrados, mas também as dificuldades encontradas para consolidar as conquistas e avançar mais. Aliás, a própria constituinte deixou uma porta aberta para uma revisão profunda da carta ao instituir que, em 1993 (quando se completassem cinco anos de sua promulgação), seria realizada uma reforma constitucional. A reforma de 1993 não atendeu aos interesses da elite conservadora, fortalecendo a intenção de reformar a Carta Magna – que a direita empresarial e neoliberal proclamou como “ultrapassada” logo após sua promulgação.

A Constituição enfrentou forte oposição conservadora desde o momento em que foi promulgada, há 25 anos. A tendência a modificá-la cresceu após a eleição, para a presidência da República, de Fernando Henrique Cardoso, em 1994. Foi no mandato do presidente neoliberal que a Constituição recebeu os mais graves ataques, que a desfiguraram. Fernando Henrique Cardoso, acometido de verdadeira fúria legislatória, investiu contra a Constituição com um número recorde de medidas provisórias, das quais usou e abusou. Ele governou como um autocrata, afrontando o Congresso Nacional e desfigurando gravemente a Constituição de 1988.

O embate, nos tempos da Carta de 1988, opõe os setores populares, democráticos e patrióticos aos herdeiros da velha oligarquia, agora travestidos de neoliberais. Este é o sentido mais forte da luta de classes no período da Carta de 1988.

O objetivo do presidente neoliberal Fernando Henrique Cardoso foi eliminar as bases do Estado nacional-desenvolvimentista. Ele queria, ao proclamar o fim da Era Vargas, reduzir a participação do Estado na economia. Para tanto, mudou a Constituição para dar tratamento igual às empresas de capital nacional e estrangeiras; para alterar o regime de monopólio do petróleo, preparando a privatização da Petrobras; criar as condições legais para privatizar a exploração de outros setores até então de responsabilidade estatal, como, por exemplo, das áreas de energia, siderurgia e telecomunicações. Investiu também contra os direitos sociais e trabalhistas com a reforma da previdência.

Os desafios da nota etapa

O Brasil vive hoje uma nova etapa iniciada com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva para a presidência, em 2002. Um dos traços dessa nova etapa é o reencontro real do país com a democracia e com o desenvolvimento. O Estado volta a ocupar seu decisivo papel no fomento e na orientação da economia, os direitos do povo e dos trabalhadores voltam ao centro da pauta política, e o respeito à soberania do país volta a orientar a ação do governo. É uma conjuntura nova, na qual o país reencontra o espírito da Constituição Cidadã.

O ex-constituinte e dirigente comunista Aldo Arantes lembra que a Carta promulgada em 5 de outubro de 1988 resultou de intensa mobilização popular, e que as questões ainda não regulamentadas são travadas pelo confronto entre conservadores e progressistas, repetindo, hoje, situação semelhante ao que ocorreu na constituinte há 25 anos.

“A Constituição é uma vitória dos setores democráticos e progressistas, que conseguiram garantir diversos avanços através da participação popular. Houve uma dificuldade para ir além de princípios de caráter mais geral e muita coisa foi jogada para regulamentação posterior”, diz Aldo Arantes. Este é o desafio colocado hoje ao país – adequar a Carta de 1988 aos avanços democráticos, sociais e patrióticos alcançados. Os princípios estão lá, na Constituição. O desafio é regulamentá-los para que se transformem em direitos efetivos e não apenas formais.

Referências

Costa, Emília Viotti. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. São Paulo, Editora Unesp, 2006

IBGE. Estatísticas históricas do Brasil. Rio de Janeiro, IBGE, 1990

Koval, Boris. História do proletariado brasileiro – 1857 a 1967. São Paulo, Alfa-Ômega, 1982.

Marx, Karl. Crítica da Filosofia do direito de Hegel (1843). São Paulo, Boitempo, 2005.

Vergottini, Giuseppe. Verbete “Constituição”. In Bobbio, Norberto, Matteucci, Nicola, e Pasquino, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília, Editora da UnB, 1986.