Audifax Rios – Histórias milagrosas de terra e mar

Por * Audifax Rios

Sou do tempo em que os livros didáticos ainda eram pobremente ilustrados, muito menos coloridos. Temia ter que passar pelo Gaspar de Freitas, porém a Crestomatia ainda enfrentei, com denodo e galhardia, num tal quinto ano primário, reciclagem para enfrentar o vestibularíssimo exame de admissão ao ginásio. Antes disso as disciplinas de Geografia e História eram acasaladas em Conhecimentos Gerais e vistas como um almanaque de curiosidades: Saara, silvícolas nus, Everest, Paraguai, Sete Quedas, faraós, Vespúcio, Sagres, Marco Polo e os grandes descobrimentos…

Do navegador genovês, sabia-se mais sobre o ovo que ele botou (?) na mesa inquisidora, em pé, que suas caravelas singrando no Caribe. O nome próprio era lembrado por conta da adivinha traiçoeira: “lombo, lombo, lombo; quem descobriu o Brasil?”. E sobre a descoberta o mesmo refrão: partiu do porto de Palos e etecetera, e etecetera… Todos os professores omitiam a escapulida do andaluz Pinzón para mirar o Rostro Hermoso, descabralizando a supremacia lusa nos mares tenebrosos. Colombo trazia na ponta da língua a rota do eldorado da especiaria, o vascaíno caminho das Índias e os reis católicos, Fernando e Isabel, ficavam na corte, confortável e eternamente sentados em trono esplêndido, as coroas luzindo ouro e gemas como num conto de fadas.

O certo é que Cristóvão Colombo foi o desbravador dos paraísos fiscais e, como Cabral, recebeu de gratidão altas patentes, comendas e cargos de mando. Dessa heroica narrativa, saga digna de um cordel de Leandro Gomes de Barros, dois nomes me ficaram na memória, talvez pela sonoridade toureira, os “eles” dobrados e o tom misteriosamente ciganesco: Bobadilla e Valladolid. Só lembrando: o primeiro, nome do governador que tomou o cargo do Cristóvão; o segundo, toponímia da cidade onde morreu sem dragonas, sem trono, sem sequer honras de toureiro chifrado.

Pra consolo, o alquebrado corpo do navegador (que punha, em pé, sobre as vagas do Atlântico, as caravelas Santa Maria, Pinta e Nina, melhormente que um ovo de casca trincada) descansa em paz na República Dominicana, na embocadura do rio Ozama (nada a ver com o Bin Laden) e suas gorduras azeitam um farol monumental que piscava nas noites lúgubres, proclamando para os argonautas de então: aqui é a América.

Já Nossa Senhora Aparecida não constava nos compêndios dos tais conhecimentos gerais e bem merecia, objeto almanaqueano que era. Uma santa, além de pequena, esculpida em barro, preta e descoberta por humildes pe(s)cadores do Paraíba do Sul. Numa época bem mais preconceituosa que atualmente, os idos de 1717. O reconhecimento da virgem afogada deu-se em 1930 no papado de Pio XI, mais liberal e generoso que o sucessor.

Foi duro, mas o povo terminou por admitir e aclamar a santinha escurinha como padroeira do Brasil de brancos e amarelos. E o hino foi entoado com todo ufanismo que um hino requer pela, também pirrototinha, Elis Regina, da lavra de Renato Teixeira, romaria que implora: “ilumina a mina escura e funda o trem da minha vida”.

No meu tempo de menino havia pouca Aparecida. O que rolava mais era Fátima e Lourdes, graças aos propalados milagres da cova e da gruta. O povo queria comer mole, uma promessa aqui, um ex-voto ali e tudo resolvido. Estavam descobertos os caminhos para viver em paz no chão da América, os conhecimentos gerais para ser feliz na terra brasilis.


*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo

Fonte: O Povo

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