América Latina: temas urgentes da conjuntura geopolítica

Na sexta-feira passada (18), foram concluídas em Havana as deliberações da Primeira Conferência sobre Estudos Estratégicos, organizada pelo Centro de Investigaciones de Política Internacional, dependente do Instituto Superior de Relaciones Internacionales (ISRI), do Ministerio de Relaciones Exteriores de Cuba. 

Por Atilio Borón*, na Adital

Foram três dias de produtivas discussões nos quais se revisou distintos aspectos da conjuntura geopolítica internacional e o papel que na mesma jogam os países da América Latina e Caribe. Algumas reflexões preliminares haviam sido expostas em uma postagem anterior. A seguir, são expostas algumas das conclusões mais relevantes da conferência:

a) Necessidade de uma resposta muito mais cortante de nossos países em relação à agressão informática, à espionagem e aos ciberataques lançados por diversas agências de inteligência dos Estados Unidos. De fato, quando o Google, o Skype, o Facebook e outras grandes companhias do mundo da Internet reconheceram publicamente que transferiam seus arquivos aos organismos de espionagem e segurança dos Estados Unidos, todos esses programas deveriam ter sido eliminados imediatamente dos organismos governamentais da região e, na medida do possível, substituídos por similares do software livre. Paralelamente, deveriam ter sido lançada uma grande campanha para desalentar seu emprego nas organizações não-governamentais e pelo público em geral, coisa que está sendo feita apenas no Brasil, vítima preferencial desses ataques juntamente com a Alemanha e a França, segundo revelações recentes. Vários especialistas coincidiram em assinalar que os programas convencionais de antivírus revisam e limpam todos os arquivos de computadores localizadas tanto no Cairo quanto em Buenos Aires ou Bangalore; porém, que o trabalho é feito nos EUA e que, simultaneamente, à remoção ou não dos vírus, esses arquivos são copiados e mantidos em gigantescos servidores controlados pelo governo dos EUA, onde são armazenados e revisados primeiramente por robôs informáticos e, quando aparecem conteúdos, emissores ou destinatários suspeitos, por humanos. Conclusão: impõe-se acelerar o trânsito para o software livre e, além disso, descartar todos os computadores feitos nos EUA ou por firmas norte-americanas radicadas em terceiros países, de onde se desprende a importância de desenvolver uma indústria latino-americana de produção de hardwares de diversos tipos (computadores de mesa, laptops, tablets etc.).

b) Outra das conclusões foi sobre A silenciosa e permanente agressão militar do imperialismo e o papel da Unasul. Um dos graves problemas que a região enfrenta é que, a pesar de estar cercados por 76 bases militares estadunidenses, até agora, os governos da Unasul não foram capazes de chegar a um consenso sobre uma hipótese de conflito realista para a região. Hipótese que deve responder a uma pergunta bem simples: quem é o nosso mais provável agressor ou quem já está nos ameaçando? Apesar da avassaladora presença de tantas instalações militares estadunidenses disseminadas ao longo de toda a América do Sul, essa resposta ainda não foi sequer esboçada e continua sendo um tema tabu no interior da Unasul. Obviamente, que a heterogeneidade do mapa sociopolítico sul-americano conspira contra tal iniciativa. Há governos que assumiram como sua missão converter-se nos "Cavalos de troia” do império e obedecer incondicionalmente as diretivas emanadas de Washington: na América do Sul, essa é a situação da Colômbia, do Peru e do Chile, com a provável adição a essa lista do governo do Paraguai. Há outros que pugnam por assegurar sua autodeterminação e resistir aos desígnios e pressões do imperialismo: caso da Bolívia, do Equador e da Venezuela. E outros, como a Argentina, o Brasil e o Uruguai, que navegam em meia água: apoiam debilmente aos segundos em seus projetos continentais; porém, partilham com os primeiros sua vocação de instaurar em seus países um "capitalismo sério”, enganoso ‘silêncio trovejante’ que enturva por igual a consciência de governantes e governados. O resultado é a enorme dificuldade de chegar a um acordo para, por exemplo, exigir algo tão fundamental como a retirada das bases militares estrangeiras da América do Sul; ou para manter essa parte do continente como uma zona livre de armas nucleares, coisa que até agora é impossível de certificar. Como saber quais são as armas que o Pentágono instala em suas bases? Há suspeitas muito fundadas de que em algumas que possui na Colômbia, como Palanquero, ou na da Otan, nas Malvinas (base que conta com o apoio logístico e a presença militar estadunidense) pode haver armas de destruição massiva. Porém, a verificação in situ provou se, pelo menos até agora, impossível. A silenciosa, porém muito efetiva ingerência de Washington sobre as forças armadas latino-americanas traduz-se também na insólita continuidade dos programas de "formação e adestramento” de militares e –cuidado com isso!- de forças policiais na região. Inclusive, em governos claramente enfrentados com o imperialismo norte-americano, a inércia de tantas décadas de formação na Escola das Américas e em outras do mesmo tipo torna difícil substrair-se à pressão militar para continuar com esses programas. Porém, quando o costume e os incentivos crematísticos não são suficientes, a Casa Branca apela para a extorsão. Se um país deicde não enviar seus oficiais para os cursos de formação nos EUA, em represália, Washington pode interromper o subministro de equipamento militar aos países da área, seja sob forma de doações ou vendas subsidiadas. Desse modo, o governo desobediente poderia depois ser acusado de "não colaboração” na guerra contra o narcotráfico ou contra o terrorismo, entre outras coisas por não contar com as equipes e armamentos adequados para a tarefa. E é lógico pensar que quem se adestra nos EUA é treinado para combater a quem esse país considere como seus inimigos. E já sabemos quem são esses para o império: precisamente os governos e as forças anti-imperialistas da região.

Em suma: os cursos, as armas e as doutrinas militares conformam uma trindade inseparável. Os países que enviam seus oficiais para ser treinados nos EUA estão também deixando nas mãos desse país decidir quem são os inimigos a combater e como fazê-lo.

Na mesma linha, deve-se ressaltar a absurda sobrevivência do TIAR, Tratado Interamericano de Assistência Recíproca desenganado nos fatos pela colaboração oferecida por Washington a Grã Bretanha na Guerra das Malvinas; ou a continuidade das reuniões periódicas dos Comandantes ou da Junta Interamericana de Defesa; ou a realização de operações conjuntas com forças dos Estados Unidos, sendo que este é o único inimigo regional à vista. O anterior se complementa, no plano jurídico, com a aprovação em quase todos nossos países por uma legislação antiterrorista inspirada somente na necessidade de proteger a sigilosa ocupação dos EUA do território latino-americano e de criminalizar as forças políticas e movimentos sociais eu se opõem aos avanços do imperialismo.

c) Também surgiu da conferência a necessidade de estudar sistematicamente o imperialismo norte-americano. É preciso reverter uma perigosa tendência muito presente nas forças políticas e nos movimentos anti-imperialistas da região e que se sintetiza em uma consigna limítrofe ao suicídio: "não se estuda o inimigo; combate-se”. Exalta-se o fervor militante, o que está bem, porém, se subestima a necessidade de conhecer cientificamente, minunciosamente, ao imperialismo, o que está mal. Sem estudar a fundo os EUA como centro nervoso do sistema imperialista; sem conhecer como funciona; sem saber quais são os dispositivos mediante os quais estabelece seu predomínio em escala mundial e quem são seus agentes operacionais nos planos da economia, da politica e da cultura; desconhecendo quais são suas estratégias e táticas de luta, seus artifícios propagandísticos e suas concepções ideológicas, e quem seus peões locais se torna quase impossível travar uma batalha com êxito contra sua dominação. Por isso, José Martí, um dos grandes heróis de nossas lutas anti-imperialistas, tinha razão quando, para fundamentar seu diagnóstico sobre os ominosos desígnios dos EUA, disse ao seu amigo Manuel Mercado que "vivi no monstro e conheço suas entranhas”.

Porém, o desconhecimento do império não ´atributo exclusivo da militância anti-imperialista. Infelizmente, na academia de nossos países o estudo dos EUA é uma matéria que brilha por sua ausência. Contam-se nos dedos os centros de investigação que se dedicam a estudar nossos opressores, enquanto que nos EUA são ao redor de 300 os centros e/ou programas de ensino e investigação que têm por objeto investigar nossas sociedades. Essas preocupantes realidades deveriam suscitar uma rápida reação das forças anti-imperialistas da região, recordando o que com tanta razão observara Lenin, ao dizer que "não há nada mais prático do que uma boa teoria”. Uma boa teoria sobre o imperialismo contemporâneo que deve articular a tradição clássica, sobretudo a teoria leninista do imperialismo, com as novidades que o fenômeno assume um século depois que o revolucionário russo escrevera seu livro sobre o tema. Novidades entre as quais o deslocamento do centro do sistema imperialista de potências coloniais europeias para os EUA não é precisamente a menor; novidades, convém ressaltar, que, longe de refutar as previsões e as análises de Lenin, as ratificaram, porém sob novas formas que não podem ser ignoradas; mas, pretende-se travar um eficaz combate contra tão perverso sistema.

Necessidade, portanto, de estudar seriamente o funcionamento do "complexo militar e industrial” norte-americano e sua insaciável voracidade. Nessa trama de gigantescos oligopólios o que constitui o coração da classe dominante norte-americana e, por extensão, da burguesia imperial. Para o "complexo militar e industrial”, a paz equivale à bancarrota: sem guerras não há lucros e sem lucros não se pode financiar a classe política dos EUA. Perversa articulação entre a rentabilidade da indústria armamentista –uma indústria que só provoca destruição e morte- e as necessidades dos políticos norte-americanos de custear suas carreiras políticas que, inevitavelmente, acabam colocando aos vencedores a serviço de seus financiadores. Portanto, não surpreende constatar que as vendas das indústrias do "complexo militar-industrial”, tenham aumentado em 60% entre 2002 e 2012, desde o início da grande contraofensiva militar depois do 11-S até nossos dias.

Dado adicional: lembram que há uns seis meses parecera que o mundo enfrentava um iminente ataque atômico lançado pela Coreia do Norte? O que aconteceu com isso? Agora, os norte-coreanos já não põem o planeta em cheque? Depois, se disse que parecia que a obstinação do Irã de continuar com seu programa nuclear punha em perigo a paz mundial e mais tarde o problema das "armas químicas” da Síria parecia colocar-nos, outra vez, ao borde de uma III Guerra Mundial. Conclusão: para a rentabilidade de seus negócios, o ‘complexo militar-industrial” necessita garantir que sempre haja crise, e se não existirem, as inventam; e se não as inventam, as constroem midiaticamente. Para isso está a imprensa hegemônica que, igual à puta Babilônia, presta-se solícita a difundir essas patranhas que amedrontam à população ao passo que estimulam a produção de novos e cada vez mais letais armamentos.

d) Diversas apresentações da conferência ressaltaram a continuidade da política da Casa Branca rumo a América Latina e o Caribe. Nesse sentido, houve um consenso praticamente unânime em ressaltar a identidade existente entre as políticas latino-americanas das administrações de George W. Bush e Barack Obama, razão pela qual convém deixar de utilizar esse nome –"administração” e falar do "regime de Washington”, para, desse modo, assinalar a sistemática violação da legalidade internacional e dos direitos humanos praticada pelo governo norte-americano, de qualquer signo. No que se refere a Cuba, se algo fez o "regime” norte-americano, foi intensificar o bloqueio financeiro, comercial e econômico contra a ilha, ajustando ainda mais os controles estabelecidos pela legislação estadunidense. Não deixa de ser surpreendente que não tenha surgido ainda uma queixa universal contra a ilegal e imoral extraterritorialidade estabelecida pela Emenda Torricelli à Lei Helms-Burton. Segundo essa monstruosidade jurídica –projetada exclusivamente para prejudicar a um só país no mundo: Cuba- o governo dos EUA está autorizado para aplicar sanções a qualquer empresa nacional ou de um terceiro país (por exemplo, uma britânica, japonesa ou sueca) apenas pelo fato de comercializar com Cuba ou por iniciar empreendimentos econômicos com a Ilha. Por exemplo, na exportação do petróleo. Em outras palavras, os EUA "legalizam” ao imperialismo mediante a despótica imposição da lei estadunidense acima da de todos os países do globo. Imaginemos o que aconteceria se um país qualquer pretendesse fazer algo parecido, por exemplo, universalizar sua legislação proibitiva da pena de morte e sancionasse àquele que, como os EUA, ainda a aplicasse! Para os que ainda duvidam de eu vivemos sob um sistema imperial, os exemplos anteriores bastam e sobram para convencê-los do contrário.

Outro traço que demonstra a enfermiça persistência da agressão contra Cuba está dado pelo fato de que Washington continua utilizando transmissões ilegais de rádio e de TV, convocando ao povo da Ilha a subverter a ordem constitucional vigente e a rebelar-se contra seu governo, com o objetivo de alcançar a longamente acariciada "mudança de regime”. Ditas transmissões não só divulgam propaganda sediciosa, como também interferem no normal funcionamento das emissoras de rádio e TV cubanas. Estima-se que o custo dessas atividades ilegais patrocinadas por Washington eleva-se a uns 30 milhões de dólares anuais. Um recente relatório da Auditoria do Governo estadunidense referido exclusivamente às atividades da Usaid e do Departamento de Estado revelou também que entre 1996 e 2011 essas agências destinaram 205 milhões de dólares para promover o derrocamento do governo cubano. Certamente, muitos milhões mais foram apropriados pela CIA, pela Usaid, pelo Fundo Nacional para a Democracia e por outras instituições afins para promover tão sinistros objetivos.

Pelo visto, Noam Chomsky tinha razão quando interrogado no final de 2008 sobre seu prognóstico acerca da iminente inauguração do "regime de Obama” respondeu sarcasticamente que este seria apenas o terceiro turno da Administração Bush. Tinha razão, como a história tem demonstrado, apesar de que ficou limitado caso se compute o número de mortes civis ocasionadas pelos aviões norte-americanos não tripulados, os "drones”, o inverossímil Prêmio Nobel da Paz superou com acréscimos o saldo lutuoso de seu predecessor.

A seis meses das eleições presidenciais venezuelanas, o muito distraído Obama ainda parece não ter tomado ciência que o triunfador dessa contenda foi o candidato chavista Nicolás Maduro e continua sem reconhecer oficialmente sua vitória e alentando os planos desestabilizadores da oposição fascista na República Bolivariana da Venezuela. E os quatro lutadores antiterroristas cubanos que purgam nas prisões do império sua ousadia de pretender desmontar a máquina terrorista instalada em Miami – e protegida pelo "regime de Washington”- poderiam ser postos imediatamente em liberdade se Obama exercesse as atribuições do perdão presidencial que a Constituição lhe confere. Porém, não o faz. Em troca, continua apadrinhando terroristas como Luis Posada Carriles ou o ex-presidente boliviano Gonzalo Sánchez de Lozada, cuja extradição é solicitada pela justiça da Bolívia por sua responsabilidade no massacre de 67 pessoas durante as jornadas de protesto popular que provocaram a sua queda.

*Atilio Borón é um sociólogo argentino, doutor em Ciência Política pela Universidade de Harvard.

(Tradução: Adital)