Aplicativo machista de rede social é proíbido pela justiça

“Trolagem” o escambau: anúncio do Tubby foi para lembrar que sexo, para a mulher, deve permanecer como um sofrimento imposto, uma violência sofrida – nunca uma iniciativa ou um prazer."

Grosso modo, a força do assalto está na a ameaça permanente que a vítima sente de ser morta; uma sensação de impotência. A última preocupação de quem é vítima de um assalto é decifrar se a arma exibida em punho ou camuflada pelo assaltante no seria legítima, falsificada, imaginária ou de brinquedo. Para o assaltado, o choque e o trauma surgem da ameaça e não das características da arma. “Fake” ou não “fake”, “trolagem” ou não, a Justiça mineira acertou ao proibir, em todo território nacional, o funcionamento do aplicativo Tubby, onde homens avaliariam usuárias do Facebook de acordo com o desempenho sexual em alguns quesitos, como “engole tudo” ou “curte tapas”.

A ideia era mostrar às mulheres, que ousaram compartilhar pitacos sobre usuários através de um aplicativo chamado Lulu, de que não haveria limites a retaliação masculina, mesmo que isso implicasse num exercício de agressão e destruição psicológica, chegando ao ponto de aparente irracionalidade total. Para o universo machista, o objetivo do castigo é o próprio castigo. Não importa se a ameaça psicológica se deu como uma arma legítima, falsificada, imaginária ou de brinquedo. A ameaça de retaliação desproporcional e covarde, enquanto manifestação de poder e autoridade masculina, foi um fim em si mesmo.

As preocupações expressas contra o Lulu – que eu também acho de mau gosto e perda de tempo – são pura hipocrisia; o que realmente vale é a expressão do poder masculino. Trolagem o escambau! O fato é que bastou uma mulher compartilhar com outra uma opinião sobre o homem, que surgiu a ameaça de instalação no Facebook de um aplicativo machista para lembrar que sexo, para a mulher, deve permanecer como um sofrimento imposto, uma violência sofrida – nunca uma iniciativa ou um prazer.

Homem sujeito, mulher o outro sexo

Rico, pobre, culto, analfabeto, empregado, patrão, alto, baixo, gordo, magro, atleta, torcedor, doutor ou paciente, o ódio ao feminino acaba com todas as divisões ou divergências entre os homens. É o ódio não das mulheres como gênero, mas do feminino, ou seja, da ideia de que as mulheres tenham ou possam ter um desejo próprio. Ódio que se estende aos homossexuais. O Tubby, arma de brinquedo ou verdadeira atirada no mato depois que a Justiça surgiu, era uma forma de lembrar as usuárias das redes sociais que ao longo da história da propriedade privada, o homem sempre foi sujeito e a mulher, o outro sexo.

As relações arbitrárias de poder, a vaidade sob todos os seus disfarces, o mundo domesticado, enfim, todas as babaquices que fazem parte da vida do ser humano, são impiedosamente sustentadas pelo aparato ideológico da indústria cultural contra o feminino. O machismo produziu, ao longo dos séculos, um arsenal de argumentos que continuam alimentando a indústria cultural. Transcreverei alguns. Não os endosso. São conceitos de outra época, que o aparato ideológico do sistema ressuscita ininterruptamente. Aí estão eles:

A desgraça humana começou, de acordo com a Bíblia, quando o primeiro homem foi influenciado pela primeira mulher a conhecer tudo, o Bem e o Mal, comendo o fruto proibido da árvore da sabedoria. No Livro do Gênesis, encontramos um Deus furioso, masculino e contrariado, condenando Eva: “Multiplicarei teus trabalhos e misérias em tua gravidez; com dor parirás os filhos e estarás sob a lei de teu marido, e ele te dominará”.

Sábios, iluminados, religiosos e… Machistas

Se continuássemos ignorantes, não teriam acontecido a queda das Bolsas e o aquecimento global. Surgiram crimes, guerras, inundações, a Internet e o próprio Lulu. Eurípedes, um dos gigantes literários do mundo antigo, escreveu:" Os melhores adornos de uma mulher são o silêncio e a modéstia ". O grande São Tomás, que resumiu a sabedoria de sua época, chegou a afirmar que o homem nascia com alma, mas a mulher só a adquiria 40 dias depois do nascimento. Uma dedução primária do apólogo com que o Gênesis judaico explicou a criação da mulher, vinda de uma costela de Adão.

O escritor francês Molière, um dos autores preferidos do rei Louis XIV e de toda a monarquia da França, com seu teatro de requinte e luxo, também dizia: "Ainda que o homem e a mulher sejam duas metades, não são nem podem ser iguais. Há uma metade principal e outra metade subalterna: a primeira manda e a segunda obedece”. O iluminado e iluminista Voltaire não desafinava com o pensamento machista "Uma mulher amavelmente estúpida é uma bendição do céu".

Para Hegel (1770-1831), a história irremediavelmente conduziria a humanidade à felicidade. Entretanto, até mesmo para o otimista Hegel, a felicidade não poderia ser igual para homem e mulher. Afirmava o alemão que “mulher pode, naturalmente, receber educação, porém, sua mente não é adequada às ciências mais elevadas, à filosofia e a algumas artes".

Schopenhauer e a filosofia do machismo moderno

Arthur Schopenhauer (1788-1860), era um crítico veementemente de todas idéias de Hegel. No entanto, que dizia respeito a mulher, Schopenhauer concordava e superava o desafeto."O simples aspecto da mulher revela que não é destinada nem aos grandes trabalhos intelectuais ou materiais. Conservam-se a vida toda uma espécie de intermediárias entre a criança e o homem. A natureza recusando-lhes a força, deu-lhes a astúcia para lhes proteger a fraqueza: de onde resultam a instintiva velhacaria e a invencível tendência à simulação do sexo feminino".

Prossegue Schopenhauer “O leão tem os dentes e as garras. O elefante e o javali, as presas; o polvo, a titã; a cobra, o veneno. A natureza deu à mulher para se defender apenas a dissimulação”. Bárbaro esse Schopenhauer! Literalmente.

No capitalismo, o infortúnio da mulher é um dado irreversível

O papel secundário da mulher e a impossibilidade do feminino é quase sempre o pano de fundo desses bárbaros conceitos, mas o elemento da dominação moral assume sempre o primeiro plano. Não é difícil perceber que o fenômeno por trás da ameaça de retaliação ao aplicativo feminino é a mesma moral. O infortúnio da mulher é um dado irreversível; nada pode agravá-lo ou remediá-lo, nem mesmo o fato de nossas mães, filhas, irmãs, esposas não serem criminosos.

O traço mais perturbador do Lulu é sem dúvida, o fato de ter quebrado um dos arsenais mais arraigados do sistema e do machismo: a suposta impossibilidade de amizade feminina. Compartilhando opiniões sobre os usuários, o Lulu quebrou o elementar respeito diante de uma imagem feminina criada pelos homens e para os homens.

Calando a boca, de Schopenhauer

Com um aplicativo assim e em pleno funcionamento, o velho Schopenhauer, não encontraria espaço para sustentar o que havia dito sobre as mulheres na sua época:"Os homens entre si são naturalmente indiferentes. As mulheres são, por índole, inimigas. Isso provém da rivalidade que, no homem, só se destina aos da mesma profissão. Nas mulheres, todas elas são rivais umas das outras, pois todas têm a mesma profissão e buscam o mesmo fim".

Tratamento diferenciado: para a economia sim; para a mulher, não.

Descobrir que a mulher tem vontade e compartilha opiniões não provocará no mundo uma hecatombe nuclear; sobreviveremos. Não é preciso acordar o Schwarzenegger ou o Stalone que vive dentro de nós. Afinal, as mulheres sobreviveram a séculos sendo observadas, comparadas, desmerecidas em capas de revistas, no cinema, na sala de aula, em todo quanto é lugar.

Além disso, já estamos crescidos para lembrar a ideia básica, que propõe aos desiguais, tratamento diferenciado, para correção das desigualdades. É o que alguns juristas chamam de princípio da razoabilidade, mas eu prefiro chamar de bom-senso mesmo. Aliás, tratamentos desiguais são muito usados aceitos pelos homens quando se fala em desenvolvimento econômico, em grana, através de incentivos fiscais, raramente questionados. Mas, em se tratando de desenvolvimento humano e avanço da condição da mulher, as coisas mudam.

O tempo da mulher-sujeito

Depois de séculos de submissão e da coisificação patriarcal e capitalista do corpo e dos sentimentos femininos, a antiga mulher-objeto finalmente passou a ter um futuro um pouco mais aberto, a ser determinado por suas práticas, escolhas, acertos e erros, e não mais pelas decisões dos homens ou pela tradição. Entraremos numa época da mulher-sujeito. E na condição de sujeito, a mulher pode se bancar, como já vem se bancando. E poderá gastar um pouco do tempo que é “seu” com aplicativos de mau gosto, como o tal Lulu, sem receber a ameaça de ser retaliada com notas de quanto gosta de"levar tapas"ou"engolir tudo". Afinal, tem homem que gasta o seu tempo torcendo para a Ponte Preta e nem por isso é alvo de ameaça ou retaliação.

Voluntariosas, perspicazes, curiosas, sensíveis à diversidade cultural e sexual, as mulheres são detentoras de adjetivos que não cabem no sistema que reproduzimos desde a Antiguidade. Replicante por natureza, plena por sabedoria, visceral e experimental, a mulher não perderá aquele gume afiado da percepção aguda, divertida, cortante. E ainda ajudará a resgatar seus parceiros masculinos. Ensinará a confiança mútua e novas oportunidades de interagir. A condição feminina não tolera repetir ou plagiar o jeitão patriarcal, mauricinho, idiotizado, infantilóide, retardado mesmo, que o sistema tanto estimula e valoriza nos homens.


por Djalma Batigalhia
publicitário e jornalista, articulista e colaborador do jornal Tribuna – Ribeirão Preto