Publicado 10/01/2014 10:40 | Editado 04/03/2020 16:27
A intimação estava feita, e agora? Os netinhos viram na tevê alguém ensinando fazer uma arraia e agora cobravam a aeronave do avô artista. Que ficou a ver navios. Por partes: primeiro, aqui pra nós, não é pipa ou pandorga, na praia é arraia, no sertão, papagaio. Segundo, partimos à procura do material: palito de coqueiro na Barra do Ceará, papel de seda no armarinho Rosa de Sharon, defronte ao Sebrae, antiga bodega do Seu Bezerra. Terceiro, tempo e disposição.
Deu saudade do empório dos Gondim, lá tinha o artefato prontinho ou as peças para montar. E de lambujem a praça do Mercado dos Pinhões para treinar, exercitar até ficar no ponto de enfrentar os ventos brandos de Iracema. Os Gondim eram dois irmãos celibatários, donzelos como ironizavam os moradores da Casa do Estudante em frente, que dedicavam a vida a este tipo de comércio singular, talvez o mais humano mister mercantilista. Lá se cobriam botões enquanto aplicavam-se ilhoses e rebites em cintos e outras peças de couro ou plástico. Os fiteiros (armários e balcões) atulhados de gregas e sianinhas, colchetes e pressões; bicos e rendas, broches e fivelas. Nada da última moda, só o corriqueiro, o usual, o indispensável.
Os Gondim eram rapazes distintos, bem educados; a mãe, vizinha parede e meia, sempre ajudando no balcão, denotava uma certa finura no vestir, nos modos de tratar os fregueses. Eram parentes próximos do maestro Antonio Gondim Lima que morava na mesma Nogueira Acioli, numa casinha em cujo frontispício mandou esculpir uma lira em concreto a denotar o ambiente musical que imperava no pedaço. Pois à noite ministrava aulas de piano, ele, autor do hino do estado do Ceará em parceria com Gustavo Barroso.
A cultura de almanaque incentivava estes mercadores de quinquilharias a vender, também, livros e gibis, aventuras de caubóis e peraltices de animais humanizados. Novidades permultáveis na base de dois por um. Os livros de bolso ali comercializados eram aqueles da editora Monterrey, muito “western” e, um pouco reservados por conta do teor erótico das capas de Benício, as aventuras de Gisele de Montfort, a espiã nua que abalou Paris. Os clássicos da Ebal já haviam sido substituídos pelos infantis de Disney e até mesmo a tentativa abrasileirada de Maurício de Souza. Os condenados catecismos do Zéfiro nunca teriam passado pelos ensebados balcões dos recatados mancebos, negociar tal ignomínia não combinava com a formação cristã dos distintos divulgadores da cultura. Havia sim, e muito, folheto contando a vida dos santos, os Gondim eram católicos convictos, cadeiras cativas da igrejinha de Santa Luzia, ali perto.
Mas voltemos às arraias, demoramos tanto a cumprir a promessa aos netos, fizemos finca-pé por pura incompetência a ponto de o pai deles resolver assumir a empreitada, o que foi providencial. Saiu-se bem, as cores nos tons prediletos, a curvatura exata (científica) dos palitos, comprimento e peso do rabo e outros segredos para o bom desempenho do trabalho aparentemente banal. Sim, e a linha na espessura ideal sem o recurso criminoso do cerol. E lá se foram para a praia de Iracema ao final da tarde verificar o sucesso do desafio. Como troféu, o papagaio emoldurado pelo sol vermelho engolido pelo mar, espetáculo assistido diariamente pelos últimos amantes da natureza na varanda da Ponte dos Ingleses.
Nossa incapacidade em armar arraias tem razão de ser. Nunca seguimos à risca as instruções quanto à curvatura dos palitos mestres, mantinha-os retos, em nada ajudando a flanar, sempre iam ao chão de ponta cabeça como ávidos carcarás ou audazes camicases. E desistimos do ofício quando do desastre humilhante frente aos colegas. Concebemos uma arraia bem maior que as demais para que sobressaísse perante os concorrentes. Cores bem combinadas, cauda de seda multicolorida feita com retalhos colhidos no ateliê das modistas Maria e Nenem da Dália no caminho do Alto da Liberdade, as feiteiras das nossas túnicas ginasianas. Ai resolvemos ousar um pouco mais: recortamos de flâmulas as cabeças de dois políticos de então e colamos na peça, ideia que alterou demasiadamente o peso da geringonça, tantas impressões de serigrafia no espesso tafetá comprometeria certamente o desempenho da pretensiosa aeronave de brinquedo, nunca haveria de subir aos céus. Embora os candidatos dos retratos lograssem chegar ao pódio eleitoral: Parsifal Barroso, governador do Ceará e Padre Palhano de Saboia, prefeito de Sobral. Nossa arraia era ruim de urna, jamais decolaria.
Algum dia apagaremos o trauma, eliminaremos o recalque. E soltaremos um papagaio de responsa, branco, no azul do céu de Santana, com um leve desenho em aquarela. Acompanhados, certamente, de Flora, João e Joaquina, os netinhos que atiçaram de novo a alma do menino no corpo já sambado deste escriba saudosista.
*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo
Fonte: O Povo
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