A rebelião que deu poder ao povo completa 22 anos na Venezuela

Nesta terça-feira (4) completam-se 22 anos da data em que a juventude militar venezuelana reavivou o avanço popular. Em 4 de fevereiro de 1992, com indignação, o povo se manifestou contra a crise do sistema político, criando um vínculo que amadureceria seis anos depois (1998) com a vitória eleitoral que abriu caminho à Revolução Bolivariana.

Por Pedro Ibañez, da AVN


Quartel Montana homenageia a data de 4 de fevereiro: Foto: José Manuel Correa
 
O governo de Carlos Andrés Pérez, da Ação Democrática (AD), enfrentava um alto nível de impopularidade, com uma série de greves e protestos – 546 em apenas um ano – aos quais se juntaram professores, estudantes, trabalhadores dos transportes, empresas básicas, tribunais e médicos.

O governo da AD contava com o apoio essencial dos Estados Unidos, sob a tutela do republicano George Bush, promotor do neoliberalismo, esquema sob o qual se programou a privatização da CanTV e da empresa aérea Viasa. Em 1990, o preço do barril de petróleo tinha despencado de US$ 20 para US$ 16,60 e a inflação alcançou o índice de 40%.

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A situação do país era preocupante. Doenças como a malária e o cólera eram recorrentes e os serviços básicos como abastecimento de água potável se tornavam cada vez mais irregulares.
Além disso, a classe política desgastada continuou empobrecendo o país como vinha fazendo há anos.

Um grupo de oficiais, diante da já evidente decomposição do sistema político, inspirado no ideário do libertador Simon Bolívar, fundou em 24 de julho de 1983 o Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR-200).

O MBR-200, formado pela juventude militar, oficiais superiores e subalternos, logo conhecidos como os "comacates" (sigla de coronéis, majores, capitães e tenentes), estudou a tríade de Simon Bolívar, Simon Rodriguez e Ezequiel Zamora, de cujos pensamentos retomaram o conceito de soberania, pedagogia libertadora e defesa do povo.

Em 27 de fevereiro de 1989, o então presidente venezuelano pôs em prática as medidas de ajuste estrutural propostas pelo FMI, que tinham como objetivo implantar políticas neoliberais, tais como reduzir os gastos sociais e alterar a política de preços de muitos produtos. Tais políticas pioraram a vida da maioria da população do país e culminaram nos violentos tumultos, que ficaram conhecidos como “Caracaços”. Milhares de pessoas morreram.


Hugo Chávez em 1992. Ao seu lado, Francisco Arias Cárdenas e Jesús Urdaneta. Foto: Reprodução

O episódio acelerou a consolidação do MBR-200, que preparou uma rebelião militar para estabelecer um Governo de Emergência Nacional que resgatasse a dignidade do povo e restabelecesse o país do desprestígio do bipartidarismo.

As condições estavam dadas. Em novembro de 1991, o escritor Arturo Uslar Pietri tinha alertado que a extrema situação de pobreza poderia gerar um golpe de Estado no país, o mesmo foi dito pelo jornalista José Vicente Rangel. Dentro da instituição militar, o MBR-200 operou com um alto nível de prudência e clandestinidade que pôde manter até o desenlace dos fatos.

Operação Ezequiel Zamora

A Operação Ezequiel Zamora consistiu na tomada das cidades de Caracas, Barquisimeto (Lara), Maracay (Aragua) Valencia (Carabobo) e Maracaibo (Zulia), ao norte de Venezuela. Os responsáveis foram os tenentes-coronéis Hugo Chávez, Francisco Arias Cárdenas, Jesus Urdaneta Hernandez, Jesus Ortiz Contreras, Yoel Acosta Chirinos e Luís Pirela Moreno.

Também os capitães Dario Arteaga Paez, Luís Valderrama, Angel Godoy Chávez, Pedro Jimenez Giusti e Angel Martinez Alfonzo, junto a eles outros oficiais que somariam um total de 133 rebeldes e mais de mil soldados.

A rebelião programou controlar as principais unidades militares e com elas avançar sobre Caracas desde Valencia e Maracay para conformar um comando conjunto coordenado no Museu Histórico Militar, em La Planicie. A ação previa ocupar o Forte Tiúna e o Palácio de Miraflores (sede da Presidência), enquanto que em Zúlia seria tomada a cidade de Maracaibo e se avançaria militarmente até Barquisimeto.

Em Maracay o objetivo era a Base Aérea Libertador, onde seria tomado um esquadrão e seriam mobilizados os batalhões de paraquedistas José Leonardo Chirino e Garcia de La Serna até Caracas, sob o comando de Acosta Chirinos, para ocupar o aeroporto de La Carlota.

Valencia prestaria apoio a Caracas e Maracay com a Brigada Blindada Pedro Leon Torres, composta por tanques Escorpio, o Grupo de Artilharia General Salom, a Companhia de Honra 24 de Julho, e a Companhia de Comunicações.

Arias Cárdenas em Zúlia tomaria o controle sobre o Grupo de Artilharia de Mísseis Monagas, para controlar por sua vez o destacamento 35 da Guarda Nacional, o Quartel Libertador, o Quartel de Patrulheiros da polícia do estado, a sede da Direção dos Serviços de Inteligência e Prevenção (Disip), instalações petroleiras, a residência do governador e a ponte sobre o lago.

Em Caracas, eles neutralizariam o trânsito no Forte Tiúna com o Batalhão de Infantaria Bolívar. O regimento Agustin Codazzi tomaria o Comando Geral do Exército, o Ministério da Defesa e os escritórios de comunicação; por sua parte, o Batalhão de tanques Ayala, com as unidades Dragon 300, faria o Palácio de Miraflores.

A Rebelião

O livro 4F: A Rebelião do Sul, de José Sant Roz, revela que um capitão ligado ao diretor da Academia Militar, general Manuel Delgado Gainza, na manhã do dia 3 de fevereiro, delata o movimento e este fato desencadeia as ações nesse mesmo dia.

O presidente Pérez se encontrava em Davos, Suíça, participando da cúpula econômica e, ao seu regresso, no aeroporto de Maiquetia (Vargas), ele foi informado pelo ministro da Defesa Fernando Ochoa Antich sobre uma eventual rebelião militar. Pérez não deu importância à advertência e foi para La Casona (residência oficial do presidente da Venezuela) às 22h. Uma hora e meia depois, uma coluna de tanques subia pela avenida La Salle para dirigir-se até a avenida Andrés Bello, rumo a San Bernardino.

Nesse mesmo momento, por Tazón, ao sul da cidade, chegou o Batalhão José Leonardo Chirino, com destino a La Carlota. Duas companhias se dirigiram a La Casona e ao Forte Tiúna, enquanto um pelotão se mobilizou até a Venezuelana de Televisão, para tomar as instalações e transmitir a proclamação dos rebeldes.

Foram tomadas a estação do teleférico e a sede da Polícia Metropolitana em Caracas. Ao ter noção da dimensão da rebelião, Pérez partiu para Miraflores. O mesmo faria uma coluna de 12 tanques Dragón 300 que saiu de Forte Tiúna rumo à avenida Urdaneta. À meia-noite já estavam tomadas La Casona, o Comando do Exército e a base aérea de La Carlota.

4 de fevereiro

As unidades de artilharia chegaram ao Comando Geral da Armada e em poucos minutos começaram os enfrentamentos. Na região oeste da capital, o mandatário Carlos Andrés Pérez conseguiu ingressar no Palácio Miraflores acompanhado pelo ministro das Relações Interiores Virgílio Ávila Vivas, o chefe da Casa Militar, vice-almirante Ivan Carratu, seus ajudantes e o membro da AD Luís Alfaro Ucero.

Em seu gabinete, Pérez começou a ouvir as descargas de quatro tanques que atacavam o palácio e o regimento Guarda de Honra. Um dos tanques consegue derrubar a grade, esmaga um veículo e se dirige para o gabinete presidencial. Outro atravessa a defesa do Palácio Blanco e sobe pelas escadas externas.

Outros dois tanques rompem os portões da guarda de Miraflores. Veem-se dezenas de soldados com boinas vermelhas que rompem a porta dourada e ingressam na antessala presidencial. Pérez tem em suas mãos uma metralhadora que não sabe usar e junto ao chefe da Casa Militar e o ministro Ávila Vivas correm pelos corredores, 45 minutos depois tomam um veículo e fogem do palácio. Em Fuerte Tiúna foram detidos 22 generais.

A ação também ocorre em Maracaibo, Valencia e Maracay. Arias Cárdenas, no comando do Grupo de Artilharia de Mísseis, toma a casa do governador Oswaldo Álvarez Paz, do partido Copei, e o retém em nome das forças insurgentes.


Soldados tomam o areporto de Valencia, na Venezuela. Foto: Reprodução.

Por volta de meia-noite e meia, um batalhão com o comandante Hugo Chávez chega a Caracas para dirigir-se a La Planicie, onde toma o comando do 422º Batalhão de Paraquedistas e uma companhia de infantaria, para situar-se a 1,5 mil metros de Miraflores.

Depois da fuga, Pérez tenta chegar à Televen, mas é impedido devido aos ataques na sede da Disip de Los Chaguaramos. Junto a seus acompanhantes evade a zona e se apresenta a Venevisión para dirigir-se ao país com uma primeira mensagem, cerca da 1h30 da madrugada.

“Por agora”

Passaram-se as horas e houve algumas comunicações entre o alto comando militar e Chávez. Inclusive se fez a ameaça de enviar a infantaria da Marinha e realizar um bombardeio aéreo sobre La Planicie. O povo se encontrava nas adjacências, em apoio à rebelião, assim como os comandos de caçadores e paraquedistas situados nos arredores do palácio.

Tanques e aviões comprometidos com os rebeldes não chegaram a Caracas, os escritórios de comunicação de Fuerte Tiúna sofreram intervenção e o vídeo que foi levado ao canal 8 com a proclamação não corresponde ao formato televisivo, razão pela qual não é transmitido. Às 4h da madrugada, Carlos Andrés Pérez regressa ao palácio para dirigir-se novamente à nação e confirmar que a situação estava controlada por seu governo.


Tenente Ricardo Torres à frente de um dos tanques. Foto: Reprodução.

 

Pelas 9h30 se resolve não uma rendição, mas a transmissão de comando de tropas insurgentes com base no cerimonial militar. Chávez se despediu de seus soldados em La Planicie, nos Armazéns Militares e piquetes situados na zona, para transmitir sua decisão de retirada e ser escoltado até Fuerte Tiúna.

No Ministério da Defesa estava previsto que o comandante Chávez falaria através do sistema de comunicações interno com as unidades ainda insurgentes, mas jornalistas e meios de comunicação já estavam no local, razão pela qual o tenente-coronel aparece diante dos jornalistas e das câmeras, assumindo sua responsabilidade, e pronuncia o "Por agora" que dividiu a historia contemporânea da Venezuela. “E eu perante o país e vocês, assumo a responsabilidade por este movimento militar bolivariano”, disse Chávez.

Reorganização e vitória popular

O povo venezuelano conheceu pela primeira vez, na televisão, seu futuro líder. Mais tarde, teve suas garantias suspensas e no extinto Congresso ocorreria um debate em que Rafael Caldera expressava que é impossível pedir a esse povo que "se imole pela liberdade e a democracia" quando estas não são capazes de dar-lhe o que comer.

“O 4 de fevereiro foi para nós muito importante porque era a esperança. Houve muita esperança, muita alegria. O que víamos na verdade era isso, estávamos todos a favor de que ocorresse, que essa conjuntura acabasse”, relatou ao coletivo A Célula, Carmen Acosta, habitante de Catia.
Os oficiais insurgentes foram privados de liberdade e em Yare continuaram trabalhando no projeto político que anos depois convocaria diversos setores do país. Em 26 de março de 1994 foram, como disse o próprio Chávez para as “catacumbas do povo", onde aglutinariam o apoio popular que depois de umas eleições o levaria ao poder em outro fevereiro, o de 1999.

O 4 de fevereiro evidenciou a falsa imagem do sistema político venezuelano que se difundia no exterior e demonstrou o pouco respaldo popular com o qual contavam aqueles que então representavam ao que restava do Pacto do “Punto Fijo”, aqueles que como futura oposição seriam igualmente afastados por setores fascistas e lideranças provenientes do poder econômico.

O jovem tenente-coronel Hugo Chávez em 4 de fevereiro de 1992.  Foto: EcuRed.

Um mês depois da rebelião ocorreu o Carnaval e o povo não deixou de expressar de forma curiosa a sua alegria. Em várias regiões se viam crianças fantasiadas com uniformes de campanha e boinas vermelhas, conhecidas popularmente como os "chavezitos". Nas paredes de Caracas, começavam a aparecer pichações, expressando o clamor popular que começou a tomar corpo como semente de uma democracia participativa e protagonista. Em todas as partes, podia-se ler esta frase, que ainda se ouve: "Viva Chávez".

(Tradução da Redação do Vermelho)