Duas décadas após o genocídio, Ruanda segue buscando justiça

Em abril, no Ruanda, completam-se 20 anos desde o massacre dos Tutsis, em 1994, por paramilitares e oficiais Hutus ligados ao governo. Neste cenário, o papel dos discursos de desumanização, de manipulação das diferenças identitárias por líderes políticos e a atuação das Nações Unidas ficaram no centro dos debates sobre este evento trágico que durou cerca de 100 dias e deixou 800 mil mortos, Tutsis e Hutus.

Por Moara Crivelente, da Redação do Vermelho

Memorial do genocídio no Ruanda - AP Photo

A análise do conflito entre Tutsis e Hutus neste país centro-africano é extensa, envolve a avaliação da tática colonialista da Bélgica – com o antagonismo de grupos diferentes para a sua manipulação e dominação – e as interpretações politicamente motivadas das identidades étnicas dos dois grupos, que passaram a servir como motivação e para a promoção da violência.

Em 1994, a escalada do discurso de ódio de grupos Hutus contra os Tutsis e contra os Hutus que os protegiam foi veiculada principalmente através das emissoras de rádio – a mais famosa, Rádio das Mil Colinas, é ainda hoje vastamente analisada para entender a propaganda de agressão – com a desumanização dos Tutsis por líderes políticos Hutus, inclusive governantes. Entre as incitações, os líderes chegavam a convocar Hutus a empunharem armas para “limpar” o Ruanda das “baratas” Tutsis.

Mas o Ruanda também abrigava, desde 1993, as forças de manutenção da paz internacionais, após o conflito do país com o vizinho, Uganda. A inação da Missão das Nações Unidas de Observação Uganda-Ruanda tornou-se um símbolo da complexidade das missões internacionais, mas também uma plataforma para a sua politização, para justificar, subsequentemente, os princípios igualmente enviesados de um direito à “intervenção humanitária contra as atrocidades”.

Em 1999, uma missão de investigação da ONU divulgou a sua avaliação das ações da missão no país durante o período e concluiu que a "falha das Nações Unidas em prevenir e, subsequentemente, parar o genocídio foi uma falha do sistema da ONU como um todo," com falta de recursos e "compromisso político" para deter o massacre.

   Foto: ONU

   Peter Hansen (dir., no meio), sub-secretário-geral da ONU para assuntos humanitários, visitou Kigali, capital do
   Ruanda, em 1994, e foi recebido pelo general canadense Roméo Delaware (esq.), que liderava a missão da ONU
  de manutenção da paz entre o país e o Uganda (Unamir) desde 1993.

Esta espécie de "mea culpa" busca a responsabilização dos líderes internacionais sobre a inação e o comprometimento contra a repetição da tragédia, mas tem desdobramentos alarmantes na manipulação desse evento para a promoção de uma doutrina intervencionista, que busca legitimar as chamadas "guerras humanitárias".

A violência extrema disseminada pelo país e o que foi apresentado como um "dilema" das tropas da ONU na região sobre a impossibilidade burocrática, política e legal em intervir viraram assunto de diversos filmes, livros, trabalhos de análise e debate sobre o direito internacional, a chamada "responsabilidade de proteger" e, em contraposição, a denúncia das consequências da ingerência internacional e da manipulação política das diferenças em detrimento da liberdade dos povos em resolver os seus conflitos.

Tribunais tradicionais
para a reconciliação

Passados 20 anos desde o trágico evento do genocídio, o governo estabelecido pelos Tutsis, liderado por Paul Kagame, buscou lidar com a situação pós-conflito da sua maneira. Apesar do estabelecimento de um tribunal internacional para julgar os envolvidos nos crimes contra a humanidade cometidos com o respaldo do governo anterior, as autoridades ruandesas estabeleceram tribunais internos sob os moldes das cortes comunitárias e tradicionais empregadas outrora, os Gacacas.

Incompreensível para as mentes acostumadas com a doutrina da punição exemplar e da proteção da sociedade contra os transgressores, o princípio dos Gacacas é o perdão e a reconciliação. Para isso, entretanto, é preciso garantir a construção da memória, expor a história e responsabilizar os que perpetraram os mais graves crimes contra a sociedade, mas também reintegrá-los, no processo de reconstrução.

Os tribunais tradicionais combinaram também elementos do processo judicial internacional, pois estabeleceu, por exemplo, que os autores dos piores crimes não fossem elegíveis para o processo ou servissem antes uma pena mínima – após o seu julgamento no tribunal internacional – para só então serem elegíveis ao Gacaca, onde contam, diante da comunidade e das vítimas, ou seus familiares, qual foi o seu crime e a sua motivação. A vítima ou os familiares também expõem a sua dor e a sua visão do evento e podem decidir se perdoam o perpetrador.

Como se pode imaginar, processo sofre críticas profundas, sobretudo devido ao posicionamento de afirmação dos Tutsis, que muitos Hutus dizem se tratar apenas de uma virada do jogo. Além disso, entre os Tutsis, há também os que acusam o governo de impor a reconciliação, contra a sua vontade, e de acabar por permitir, assim, certo grau de impunidade.

Entretanto, algumas das justificativas para o seu estabelecimento passam pelo grau massivo da responsabilidade pelo genocídio: não haveria lugar físico o suficiente para o encarceramento de tantas pessoas, nem cortes suficientes para o julgamento de todas, nos padrões internacionais. O próprio Tribunal Penal Internacional para o Ruanda é acusado de profunda ineficiência.

Mais importante, porém, o governo afirma buscar a forma local, e não a imposta internacionalmente, para lidar com a reconstrução da sociedade, através da sua própria interpretação da justiça e da reconciliação, uma questão analisada e promovida extensivamente por diversos especialistas no tema da resolução de conflitos e da construção da paz.