Manuel Domingos: Onde fica a África?

Por *Manuel Domingos Neto

Nenhum Estado africano compõe o pequeno círculo dos grandes atores da cena internacional, mas isso não quer dizer que as grandes potências desconheçam o lugar que cabe à África na política mundial. Somada à América do Sul, a África forma o maior celeiro de matérias primas do planeta.

No estudo das relações internacionais e do desenvolvimento capitalista, a repelência ao determinismo geográfico ajudou a substituir as divisões políticas binárias tipo “civilizado-selvagem” por outras como “atrasado-desenvolvido”. As lutas de “independência nacional” deixaram em desuso os termos “colonizado” e “colonizador”. A Guerra Fria consagraria as noções de “Leste-Oeste” e “Oriente-Ocidente”, e, quando o confronto capitalismo versus socialismo amainou, a divisão “Norte-Sul” entrou na moda.

As novas dicotomias ignoraram cerca de 20% das terras firmes e habitadas do planeta representadas pelo espaço africano. A África não cabe no “Oriente”, excetuada sua estreita faixa mediterrânea contígua ao “Oriente Médio”. Ninguém estranhará que um marroquino ou argelino sejam tidos como “orientais”, já que o “mundo árabe” confunde-se com o “Oriente”.

Edward Said, analisando a percepção dos poderosos de Washington acerca de sua capacidade de alterar mapas políticos, lembra que desde Napoleão os ocidentais teimam em desconhecer a variedade de povos e culturas inclusos no Oriente; chama de “rubricas falsamente unificadoras” os termos “América”, “Ocidente” e “Islã”. O “Oriente” seria algo imaginado na Europa e disseminado nas Américas.

O mesmo pode ser dito sobre a África, que comporta divisões e subdivisões a perder de vista. Mas Said pouco ou nada diz sobre os povos situados abaixo do Saara. A África negra parece não ter vaga nem no “Oriente” nem no “Ocidente”.

Se as divisões geopolíticas respeitassem minimamente a cartografia ocidental, a dificuldade para localizar a África seria intransponível: muitos países africanos situam-se abaixo e bem próximos da Europa. O meridiano que atravessa a Itália é o mesmo que passa por Angola e Botswana. Cabo Verde seria mais “ocidental” que o Reino Unido e a França, enquanto a Somália seria mais “oriental” do que o Iêmen, a Arábia Saudita e o Iraque. Por outro lado, há milhares de anos, navegadores do Oceano Índico, que banha o leste africano, mantêm relações intensas com o Oriente.

No mapa desenhado por ocidentais, a maior parte do continente africano fica no hemisfério norte, assim como a Índia e a China, o que torna bizarra a expressão “relações Sul-Sul”, construída a partir da linguagem diplomática das grandes potências e absorvida docemente por acadêmicos e jornalistas dedicados à política internacional.

Mas, se há dificuldade para situar a África do ponto de vista geopolítico, não cabe dúvida quanto a sua importância para a expansão capitalista. A Europa mudou muito quando descobriu o “caminho marítimo para as Índias” pelo extremo sul do continente. Através das águas africanas circula grande parte do comércio internacional (15% só pelo Canal de Suez). Pelo Mar Vermelho seguem navios carregados de petróleo da Península Arábica. O Mediterrâneo continua sendo o que sempre foi para a Europa e o Oriente Médio: um espaço de intensos intercâmbios e um palco de violência continuada, como ensinou Fernand Braudel. Mas, ao falar em Mediterrâneo, quem lembra que se trata de um mar “também” africano.

A costa oeste africana, que os antigos portugueses chamavam de “Costa d`África”, perdeu peso com a supressão do tráfico negreiro e a relativa perda de valor do comércio de produtos agrícolas, mas volta a chamar atenção com as descobertas de petróleo e de jazidas de minérios estratégicos. Na África, os Estados Unidos obtêm 22% de suas importações de petróleo, a mesma quantidade que adquire no Oriente Médio. Além disso, o continente africano apresenta indicações de que será um grande mercado consumidor. Um terrível sinal de sua importância é a reativação, em 2008, da IV Frota dos Estados Unidos, paralisada desde a Segunda Guerra. China e Rússia, com raízes plantadas desde meados do século XX, quando apoiaram as lutas anticoloniais, reforçam suas presenças na África.

A presença chinesa na África se dá com investimentos em infraestrutura, exploração de recursos naturais, “operações de paz” e “ajuda humanitária”. Por sua vez, a reativação da frota russa de submarinos para patrulhas no Atlântico Sul integra a estratégia anunciada por Moscou no ano passado.

Nenhum Estado africano compõe o pequeno círculo dos grandes atores da cena internacional, mas isso não quer dizer que as grandes potências desconheçam o lugar que cabe à África na política mundial. Somada à América do Sul, a África forma o maior celeiro de matérias primas do planeta.

Manuel Domingos Neto é pesquisador do Observatório das Nacionalidades

* Opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as opiniões do site.