Estados Unidos e Arábia Saudita disputam o controle do terrorismo
Os bastidores políticos, diplomáticos e da espionagem em Beirute estão ficando ainda mais agitados do que usualmente com a explosão de um surdo conflito entre dois grandes aliados, os Estados Unidos e a Arábia Saudita, pelo controle operacional e de objetivos daquele que é, segundo a linguagem usada para o grande público, o mais mal afamado grupo terrorista da atualidade – o Exército Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL).
Publicado 02/07/2014 16:04

Quando se aborda uma hipotética discordância entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita há sempre alguém que pergunta: será desta que Washington vai recomendar ou exigir uma “primavera”, uma abertura democrática numa das mais selvagens ditaduras do Oriente Médio? Nada disso. Isso não acontecerá, ou pelo menos amanhã não será a véspera desse dia.
Mas o conflito entre Washington e Riad está aberto, lê-se nos movimentos e comportamentos do contingente da CIA em Beirute que surpreendem até veteranos da diplomacia habituados “às maiores cambalhotas dos espiões”.
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Anthony Eliot diz que “tem tantas nacionalidades no sangue e prestou serviços a tantos governos que pode considerar-se um apátrida”. E que reside a maior parte do tempo em Beirute exatamente por isso, porque o Líbano também é “uma espécie de porto para apátridas, sem que se deva ler nas suas palavras qualquer remoque, antes pelo contrário”.
Eliot, na realidade um pseudônimo, utiliza a sua “reforma” observando, deduzindo e escrevendo sobre o que se passa à sua volta na capital libanesa, à luz da experiência adquirida em décadas de “vida ativa de aventureiro”. Às vezes também gosta “de uma boa conversa…” Sobretudo quando os sinais contradizem as rotinas, “que também as há em vidas tão agitadas…”
Acontece, explica Anthony Eliot, “que os senhores da CIA fizeram saber que, juntamente com a Segurança Geral libanesa, conseguiram evitar um atentado suicida no Hotel Duroy em Beirute que estaria a ser preparado por infiltrados do Exército Islâmico do Iraque e do Levante chegados da Síria, não se sabe bem porque razões”.
Eliot considera que este cenário é “o filme ao contrário”. A CIA e a Arábia Saudita são os patrões do EIIL, pelo que “alguma coisa correu mal” para que “os espiões norte-americanos tenham ido avisar a segurança libanesa, sabendo que esta é dirigida pelo general Ibrahim Abbas, próximo do arqui-inimigo Hezbollah”.
“É verdade que a situação no Iraque colocou ultimamente a CIA e os iranianos às vezes no mesmo caminho”, admite Anthony Eliot, “mas percebi que havia aqui algo que não se encaixava”.
Para isso, acrescentou, “resolvi não perder mais tempo com a árvore e tentar ir conhecer melhor a floresta. E o que apurei pode não ter o aparato que teria a explosão do Hotel Duroy, mas garanto que o potencial de instabilidade é bem maior: Estados Unidos e Arábia Saudita estão a travar-se de razões”.
A causa próxima das divergências entre Washington e Riad, segundo se sabe nos bastidores de Beirute, é o controle sobre o EIIL. “Os dois países estão de acordo com a contribuição que os islamitas sunitas estão dando para o desmantelamento do Iraque, mas o ambiente azedou a partir do momento em que a família real saudita suspeitou de que as mudanças pretendidas pelos Estados Unidos poderiam não parar no Iraque e entrar pela própria Arábia Saudita, através do EIIL”.
A interpretação de Anthony Eliot pode parecer “uma extrapolação exagerada, mas não é tão absurda como isso”, garante um diplomata iraquiano ao serviço do governo de al-Maliki na capital libanesa. Há mais gente que pensa da mesma maneira, porque tem informações seguras de que “a Arábia Saudita montou guarda e está alerta perante às mais recentes manobras do secretário de Estado John Kerry no Oriente Médio”, acrescenta.
A multiplicação de contatos em Beirute e também em outras capitais como Bruxelas, Londres e Washington permitiu-nos fazer um levantamento de fatos que dão uma ideia aproximada da envergadura do que deve entender-se pelo desenho em curso de “um novo mapa do Oriente Médio”.
O rei Abdallah da Arábia Saudita chamou de novo ao seu serviço o príncipe Bandar bin Sultan, chefe dos serviços secretos, antigo embaixador em Washington e, nem mais, nem menos, o tutor máximo do terrorismo islâmico sunita, que tem no EIIL, como teve na Al-Qaida, o grupo estrategicamente mais influente.
Bandar bin Sultan “tem estado recuado” desde o verão passado (junho de 2013), quando entrou em choque com John Kerry por os Estados Unidos não terem aproveitado o massacre químico na Síria para bombardear este país, como esteve iminente. Sultan foi “o estrategista da provocação realizada por terroristas sunitas”, garante um diplomata sírio num país europeu, e o choque com Washington valeu-lhe ser afastado pelo rei do dossiê sírio, a pedido dos Estados Unidos.
Agora Bandar Bin Sultan está de volta, por decisão do rei Abdallah, e foram-lhe atribuídas, garante-se em Beirute, as questões síria, iraquiana e o controle do EIIL. E o rei fez questão de que o príncipe estivesse ao seu lado quando se encontrou no Cairo com o novo presidente egípcio no mesmo momento em que Kerry ali esteve, “em visita inesperada”.
O diplomata iraquiano na capital libanesa considera que “o fato que fez soar os sinais de alarme na família real saudita foi a junção ao EIIL de antigos comandos militares de Saddam Hussein que, “embora não estejam preocupados com o desmembramento do Iraque, têm velhas contas a ajustar com a Arábia Saudita pelas guerras que apoiou contra o antigo regime iraquiano."
"E sabendo que houve tempos em que o regime de Saddam e os Estados Unidos se deram muito bem”, acrescenta o diplomata iraquiano, “Riad suspeitou de que Washington e Israel estariam pretendendo estender o desenho do ‘novo Oriente Médio’ e do papel do EIIL para além do desmantelamento do Iraque e da Síria, em direção à própria Arábia Saudita”.
“Obama e Kerry estão brincando com o fogo”, comenta Anthony Eliot juntando “as peças do quebra cabeças” atrás de uma cerveja num fim de tarde tórrido de Beirute, na Corniche Mazraa. “Recorrer ao terrorismo islâmico como quem pensa que está dando ordens a tropas disciplinadas e subordinadas a uma cadeia de comando é uma política aventureira que vai dar maus resultados. Nem sequer estão lidando apenas com mercenários, supostamente fiéis a quem lhes paga mais; são mercenários fanatizados pela religião e cada vez mais movidos a captagón [fenetilina]”.
Por José Goulão, de Bruxelas, com Charles Hussain, de Beirute, Norman Wycomb, de Londres, e Mário Ramírez, de Washington, em especial exclusivo para o Jornalistas sem Fronteiras
*Título original: "Estados Unidos e Arábia Saudita confrontam-se pelo controle do terrorismo sunita"
Fonte: Jornalistas sem Fronteiras