Poemas Nydia Bonetti
A poeta paulista Nydia Bonetti circula entre a concretude da engenharia civil e a sutileza da palavra. Publicou em 2013 a obra Sumi-ê e em 2012 Minimus Cantu, este último integrou a Coleção Instante Estante, um projeto de incentivo à leitura do Rio Grande do Sul.
Publicado 10/04/2015 12:34 | Editado 13/12/2019 03:30
Além das obras, Nydia tem seus poemas publicados em sites, antologias e revistas de literatura diversas, entre elas Zunái, Mallarmargens, Eutomia e Acrobata.
Esta semana a poeta contribui com a sessão Letras Vermelhas do Prosa, Poesia e Arte, veja a seguir uma série de poemas.
Então se pôs a viajar
e vieram as febres.
*
Este deserto em tudo oculto
no céu que não desaba / embora pedra.
Este rasgar de folhas
que se ouve / mas não se vê.
E as taturanas luminosas
de fogo
que nada temem / a não ser
o sal.
[e nunca mais chorou perto da árvore
pra não ferir lagartas]
*
Segue cantando nada.
Embaralhando signos contemporâneos.
A tradição sagrada
já dizia da imagem imperfeita
no espelho embaçado.
Do homem velho, que se desfaz das cascas
inúteis.
E gravemente enfermo
das febres do seu tempo, delira
em versos insanos
de encantar os cães.
*
Talvez leve um buquê de cactos. E uma canção
de Leonard Cohen.
Quem sabe uma rosa
do povo
de Hiroshima
de Gertrud
de ninguém.
As flores do mal
as flores do bem. As flores
afinal, carregam — todas — a náusea de existir.
*
O dia escorrega das mãos feito um peixe
que mergulha na terra trincada
sem se saber
sobrevivente único
desse rio temporário
que acabou de secar.
Que todo dia seca sob o sol do tempo.
Que a vida é
esse deserto em expansão.
Que a noite se aproxima e é fria.
E com que olhos nos espreitam os chacais.
*
As esquadrias metálicas, com suas peles de vidro
já não me comovem.
_A rosa sim
refletida em seus espelhos
de sol.
A flor pequena, colada na vidraça
depois do temporal.
A_temporalidade
refletida nos olhos do rio que passa ao fundo.
E as impurezas que carrega.
*
Algas marinhas flutuam nas águas
de um mar vermelho
— é tarde
um céu de cobre arde
e o sol
mergulha.
Tudo é marinho agora — é noite
quase definitiva
neste ciclo finito da vida humana
sobre a terra.
*
Num céu paralelo / não muito longe daqui
vigiam
as almas dos bichos que já morreram
das águas dos rios que já secaram
da árvore em chamas
da decepada
flor
das palavras que agonizaram
entrelábioscerrados e baús esquecidos
[nós na garganta]
A alma do mundo mora nesse lugar
e grita
na escuridão.
Na madrugada
o canto do galo é anunciação
do verbo
que se liberta vindo de lá. E reverbera sol.
*
Posso fechar os olhos, se quiser
submergir
na compreensão do instante
da não simplicidade
da flor.
E ir-me ao vento
folha viva recém-caída
que sangra seiva e tempo
— esse cão
que nos circunda
no vasto e verde campo do sentir
além
das cercanias inúteis da razão.
*
Três mulheres que passam
com olhos de noite.
Duas são sombras
do que um dia puderam ser.
A outra é sol do que não foi.
*
Seguir na noite/rua de pedra fria
em busca do cão
(que sempre volta)
Vale a festa do encontro
sem testemunhas.
*
Abutres vigiam.
Há em tudo um estado de quasemorte
num estágio
de sub-humana indiferença.
Mortesvidas são
apenas feridas
que não cicatrizam.
Cães sarnentos que perderam as asas
se arrastam.
E as escamas dos olhos caem.
Lágrimaspérolas que o tempo petrifica.
Depois tritura. E sopra.
*
Agora sabe que aquele que ama e busca
habita seu corpo.
Por isso
mergulha
fundo
dentro
de si.
Fora é tão longe
_vertiginosamente se afasta.
[E a casa envelhece iluminada]
*
Na minha rua é noite.
A casa perdida _entre.sombras.
O corpo cansado
e os olhos secos _embora.chuvas.
Árvore quase.rizomáticos pés
_ embora.nãoflores.
*
Um pássaro pousa no santuário do fim do dia.
Um ar de vidro, que não se pode respirar
[sólido frio] paralisa.
Tudo parece saído
de um tempo longe. Outro lugar/outra vida.
A procissão de tochas leva o morto
e não deixa pegadas.
Chama que não se apaga
dos olhos
do menino.
É noite — há de lembrá-la escura e fria
até o fim
dos seus dias [seriam tantos].
De alguma forma estive lá — Atávicos olhos
meus.
*
Ambidestros tigres
circunscrevem na selva ilícita
seus territórios.
Sitiados bichos procuram
_linha de fuga
utópica
antes que o fogo adentre
e o círculo se expanda
e o não
lugar para onde se ir
se instale no olhos e paralise.
*
Um dia, cantaremos o espinho na carne
do homem.
E todas as gangrenas
do ser.
Cantaremos o sangue nos olhos das mães
e o revés do rebento
da flor. A canção do intercepto.
A inominável dor.
*
Viver é esse navio, carregado de especiarias
que cruza oceanos.
Se chega ou se naufraga, já não importa. Tudo
se perde no caminho.
Um rastro breve de perfume de rosas
e sândalo. Cheiro de terra
armazenado em frascos pequenos. Potes
de cascas e sementes — que não germinarão.
Tudo será tragado pelo grande abismo.
Ninguém
fará o inventário da tua viagem.
As noites sem estrelas. Dias de sal. E o sol
sobre a pele branca. A pele fina. A pele
que se desprende. A carne viva.
As águas-vivas. As águas mortas. Os ossos.
E esse poema já não sabe o fim
a que se destina.
— Por que esse navio carregado de especiarias
atravessou meus olhos?
*
Então uma palavra engolirá outra
palavra
que engolirá outra
palavra
até que reste apenas
uma
palavra
que será devorada
pelo silêncio
[metálico fio de costurar bocas]
Para que os olhos cantem.
Do Portal Vermelho