Cordel Umbilical – Oswald Barroso: Sertão de poesia

O Vermelho-CE inicia a publicação do livro Cordel Umbilical com o prefácio do professor universitário, poeta, dramaturgo e pesquisador da cultura popular, Oswald Barroso:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
(Fernando Pessoa)

O Cedro que eu conheci no início dos anos oitenta do século passado ainda era o município de pequenos sitiantes produtores de algodão, com a usina de sua cooperativa agrícola, a escola técnica e várias indústrias em pleno funcionamento, além de um comércio muito ativo, ares de antigo centro ferroviário, lugar próspero, onde corria algum dinheiro na zona rural e se podia contratar um cantador de viola ou um sanfoneiro dos bons para uma noitada inteira. Talvez por isso, guardasse marcas da pequena Atenas cabocla que fora, espécie de São José do Egito cearense2, ou de Assaré de Patativa, já que naqueles sítios, apesar da faina intensa sobrava tempo para ouvir rádio e sonhar poesia.

Imagino que ali, durante a primeira metade do século XX, quando Idalzira nasceu, o cabra em vez de nascer chorando, como costuma acontecer, já nascia cantando, porque versejar era como falar. Então, veja lá, havia dentro de casa o pai João Bezerra, exímio poeta, e Joan ainda fala de um “Tio Clóidio” que na certa por ali andava. Além do mais, é preciso lembrar, o Cedro não por acaso ser berço de Geraldo Amâncio, um dos maiores cantadores brasileiros da atualidade, nascido exatamente nos meados dos mil e novecentos. Poesia, portanto, no meio em que Idalzira foi criada, era patrimônio familiar e comunitário, pra lá de literatura e arte, assunto cotidiano, jogo e divertimento, motivo para disputa, exibicionismo, duelo e desafio.

Sob inspiração das musas eram organizados torneios, festivais, com gêneros diversos de disputas, que incluíam perguntas e adivinhas. Provas nas quais os contendores, homens ou mulheres, careciam mostrar poderes mágicos com as palavras, através de arranjos intrincados de sons, e arrotar valentia, como se estivessem manejando espadas invisíveis. Conforme o caso, precisavam fazer tremer o inimigo com versos indecifráveis e rimas terríveis, ou comover o coração das mais resistentes donzelas com a narrativa de romances enternecedores.

Talvez, principalmente, da intimidade do lar se nutrisse aquela poética, porque naqueles sítios de então, a vida se completava em rima. Digo pela forma como Idalzira fala de sua própria experiência: “Eu rimo quando estou triste/Para as mágoas espantar/Rimo quando tenho saudades/Pois é muito feio chorar/Rimo quando estou contente/Rimo quando estou ausente/Querendo te abraçar.” E de jogos e brincadeiras, as rimas se espalhavam por afetos, sentimentos, desejos, angústias, saudades, aflições, em conversas de salas, cozinhas, alcovas e alpendres principalmente. Demoravam-se em sessões nas quais a palavra falada, cantada de preferência, medida, exata, bem escolhida, era cultivada e cultuada, debulhada em cordéis, fabulada em histórias que narravam desde os mitos da origem dos tempos até a última novidade apregoada na feira ou ouvida no rádio.

Em sítios assim, orgulho maior é ser membro de uma prole de poetas, trovadores, repentistas ou especialistas outros do verso, como a família Bezerra de Idalzira. Não por acaso, Erivan, o caçula, perde completamente a modéstia para seguir a tradição, quando afirma sua pertença a esse clã. Diz ele, numa bela quadra: “Eu sou a pedra turquesa/Minha mãe é uma safira/Sou filho de Idalzira/Poeta por natureza.” E não está mentindo, pois se trata de uma família onde o cultivo da arte poética é bem herdado, estando justificada a admiração recíproca, embora, como afirma com autoridade Joan, o filho mais velho, a mestra indiscutível seja a mãe.

Visitei o Cedro, quinze anos depois de haver lá morado, dessa vez como repórter, e também Morada Nova, outro município onde havia do mesmo modo trabalhado como educador em cooperativas de pequenos produtores de algodão. Outra era a realidade. Distritos e sítios esvaziados, plantações abandonadas. Comércio mais ativo só no dia de pagamento dos aposentados. A população envelhecera, o interior definhara. No Cedro as poucas indústrias, casas de comércio maiores e centros educacionais haviam fechado. A juventude emigrara. Nos sítios, principalmente, estabelecera-se um sentimento de abandono na fala dos velhos.

Talvez por isso, a sensação que me veio ao ler a carta de Idalzira para Joan sobre o mote: “De uma casa cheia de gente/Só resta um gato e um cancão”, foi o de estar frente a uma nova “Triste Partida”, de um canto social, como o de Patativa do Assaré. Um canto de tristeza dos que ficaram e, porque não dizer também, dos que partiram. De uma família de sitiantes que vê seus filhos irem-se, um a um, às vezes para nunca regressarem. Por isso, o canto de Idalzira é geral e dói além de sua dor particular. É a dor do migrante e de sua terra, é a dor de dois terços do mundo. É a dor de um coração partido.

Mas a dor de Idalzira é também só dela e única, porque se foi Joan e depois, tão menino ainda, Erivan, o caçula. Logo ele. Nem adiantou o consolo da visita à residência universitária e o conselho ao filho, de colocar na parede uma gravura do sol brincando com a lua, no lugar da foto de uma mulher nua (na certa por causa da rima, pois ela queria certamente era que o filho colasse a gravura de uma santa). Nada preenche o vazio na casa após a partida dos filhos. Nem os bichos: “O cancão, meu grande amigo/Canta e pula sem parar/O gato fica a miar/Pensando que não lhe ligo/Porém baixinho lhe digo/Não tenha ciúme não/Que é grande meu coração/Amo a todos igualmente./De uma casa cheia de gente/Só resta um gato e um cancão…”

Se para quem fica o vazio não tem tamanho, para quem vai a dor tem a mesma proporção, como mostram esses versos antológicos de Joan: “Volto a pegar no papel/Pra mais uma vez escrever/Tentar assim combater/Esta saudade cruel/Que amarga como fel/Corrói o peito da gente/Dá uma dor tão pungente/Que quase eu dou razão/A quem mata a solidão/Em um copo de aguardente.”

E o que é tão grande para uma mãe quanto o vazio de uma casa sem os filhos? Um vazio que nem a zoada de um cancão e de um gato, de madrugada pedindo comida, abala? O que pode preencher a espera de uma mãe solitária enquanto sonha em reunir a família no final do ano? A poesia, Sultão! Responderia a princesa Sherazade.

A maga Idalzira também é iniciada nesse segredo. Para preencher o vazio de seu mundo, armou uma dimensão de versos e rimas. Fez-se aranha rainha, lançou suas linhas e estendeu sua teia entre os caibros, ligando filhos e netos. Dor e solidão, distância e separação, espera e abandono tratou de encantar em poesia. Por carta novamente a prole dos Bezerra deu corpo ao Cedro do velho João. Fez reviver os romances de amor, o lirismo dos trovadores, mas também os torneios cavaleirescos, os desafios, as disputas, os repentes, o humor corrosivo, o sarcasmo até, a valentia, a pabulagem, a briga, a dor, a traição, o ciúme, a intriga (por que não?), todos eles ingredientes indispensáveis para uma cantoria cheia de suspense ou para um cordel repleto de imprevistos.

Na correspondência mantida entre Idalzira, filhos e neta, a vida se faz arte e a realidade se encanta em ficção. Entre afetos e notícias trocados por mãe e filhos, os poetas inserem ingredientes propositalmente artísticos. Primeiro são os filhos que, brincando, fingem querer suplantar a mãe na arte poética. Ela como resposta lhes dá um puxão de orelha:

– Respeita Januário! Depois, Joan e Erivan disputam a atenção e o amor de Idalzira simulando brigar por ela. Tudo para impressionar a mãe. E saem por aí, trocando rima, se exibindo para Idalzira, travando desafios, fingindo que a luta é só de brincadeira, pra mãe não se chatear com a arenga dos filhos. Em seguida, vêm os desafios lançados dos filhos à mãe e aceitos para saudar com versos cada neto que nasce, cada filho que casa, cada novo acontecimento na família. Mais adiante, é Joan que, para chamar atenção, se mostra escandalizado com o casamento da irmã e inventa de fazer graça, transformando aquilo num fato extraordinário.

A verdade é que nessa correspondência poética, não se sabe em que direção vai o fingimento, se no sentido de fazer a dor parecer maior para torná-la mais eficazmente artística, ou se no sentido de fazê-la artística para que se torne mais suportável. Não se pode precisar se a queixa da mãe é um pretexto para fazer poesia ou se fazer poesia é uma forma da queixa não se tornar aborrecida (porque sempre com muito bom humor), ou seja, da queixa poder ser feita reiteradamente, isto é, de fingir estar usando o pretexto da queixa para fazer poesia, quando a mãe quer mesmo é se queixar da falta de notícias do filho. Daí vem o dito de Fernando Pessoa colocado na abertura desse texto.

Muitas são cartas comuns como as de mãe orientando o filho, aconselhando o filho que se candidatou a vereador, ou a do filho consolando a mãe saudosa, outras da mãe com críticas e comentários políticos, mas há até mesmo cartas inusitadas como a do filho dando conselhos à mãe, escrita por ele como se aconselhasse uma filha, com muito humor e descontração. Depois entra a neta Geórgia na conversa e mantém o nível poético da correspondência, agora entre avó, filhos e neta.

Afinal, são cartas que ajudam a transformar a saudade em arte, a dor em vida, a solidão em beleza. Cartas que viraram atração entre os amigos de Joan e Erivan, lidas para o coletivo de estudantes. Cartas que, acima de tudo, revelam um imenso amor entre os três, agora quatro, sentimento bem traduzido nesses versos de Erivan para a mãe: “Me despeço de antemão/Já com saudade no peito/Mas sinto que é o jeito/Pois o tempo é um balão/Voando de hora em hora/Minha vontade era agora/Lhe mandar meu coração.”

Por tratar-se de um livro de correspondência poética, entre uma mãe e os seus, a obra já teria assegurado seu interesse e sua originalidade. De quebra, Idalzira ainda nos brinda com uma série de sonetos e outros poemas, em que fala de sua vida, de seus sentimentos, de sua família, de seus alunos e de sua terra, o Cedro. Trata-se, além do mais, de uma crônica do cotidiano rural, de um rico testemunho dos costumes, da política, da vida nos sítios, dos valores morais e do imaginário de uma vila sertaneja, onde ainda havia tempo e espaço para traduzir o mundo em poesia.

1 Oswald Barroso é professor universitário, poeta, dramaturgo e pesquisador da cultura popular.

2 Município do Alto Sertão do Pajeú pernambucano, berço de tantos poetas e cantadores famosos, entre os quais Rogaciano Leite e os irmãos Batista, Lourival, Dimas e Otacílio.