Sandra Helena de Souza: Dá o nome, querida

Por *Sandra Helena de Souza

Dilma Rouseeff - Reprodução

Nietzsche tem uma frase gloriosa: ‘apenas o que não cessa de causar dor fica na memória’. No instante em que tentamos reter os eventos políticos furiosos numa imagem-pensamento minimamente nítida, aceito a provocação do filósofo que também me ensinou que a memória é utilíssima, mas também prejudicial demais à consciência histórica: os homens e as mulheres de ação hão de saber separar com sabedoria o que lembrar e o que esquecer.

A já histórica sessão da votação da admissibilidade do impeachment é um desses casos emblemáticos: será lembrada com grande facilidade por uns e com muito esforço por outros. Afinal, a memória é um campo de disputa político-pessoal feroz. Aquela tarde de domingo clivou nossa brasilidade e jogou um clarão incandescente que iluminou e ofuscou, a um só tempo, as razões fundamentais dos acontecimentos em curso. Ninguém as domina inteiramente; ao fim e ao cabo, estamos construindo as narrativas, documentos, imagens, ações e performances de que se ocuparão os historiadores. Estamos já no futuro, longe o porto, navegando em mar revolto.

O 17 de abril encheu de questionamentos sinceros aqueles que sinceramente acreditavam na lisura do impedimento da presidente. Mas não só. O clarão permitiu, a muitos, ver aspectos antes obscuros e ofuscou noutros aspectos luminosos.

Quando você começou a perceber que os fatos não cabiam na narrativa dominante? Essa pergunta eu dirijo especialmente a Dilma Rousseff.

Eu já disse neste espaço que a comparação da disputa entre inimigos ou adversários políticos com jogos de futebol e torcidas passionais nunca me pareceu ofensiva. A menos que eu seja completamente insana, sou capaz de torcer loucamente, sofrer e me conformar com um 7 a 1, quando ele acontece dentro do estrito cumprimento de regras acordadas. Haverá outro campeonato. Mais que uma derrota humilhante, o que dói é o juiz roubar e não ser punido. Impensável é uma mudança de regras no correr do jogo.

A teoria do domínio do fato serviu ao STF para condenar Dirceu, sem provas, “o chefe da quadrilha” que o próprio STF decidiu depois não existir, no plano jurídico, bem entendido. Reconheço nesse momento já distante o pontapé inicial do jogo que ora travamos. Não por acaso, Janot agora usa o mesmo expediente para pedir a cabeça de Dilma.

No percurso, alguns foram impactados com os vazamentos seletivos da Lava Jato, outros com a “condução coercitiva” de Lula, ou o grampo presidencial, a dantesca sessão da Câmara, os 45 mil da Janaína e, por último, o tardio afastamento de Cunha pelas mesmas razões de cinco meses atrás. Ah, mas tem também o governo dos ministros tucanos derrotados nas urnas, a “Ponte para o Futuro” etc etc. São muitas as razões a des-fiar.

Dilma demorou a pronunciar “A palavra”, como se dela quisesse esquecer para viver sem tantas dores, mutilada que foi. De nada adiantou. A história foi impiedosa: devolveu-lhe o voto de Bolsonaro.

Que passa, mulher? Esse impedimento é legal? Fala, querida. Sim, é um filho que ninguém vai assumir. Nem ontem nem hoje. Mas diz o nome correto da coisa. Para que pare de doer também em nós. Sem temer. É a parte que te cabe.

*Sandra Helena de Souza é Professora de Filosofia da Unifor; membro do Instituto Latino-Americano de Estudos em Política, Direito e Democracia (ILAEDPD)

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